Voltei de Moscou e Buenos Aires (não estava de férias, estava jogando xadrez, há uma distinção) e minha primeira aventura cinematográfica foi “Dogville”, que finalmente estreou em Joinville. Não sei quanto tempo vai ficar em cartaz, acho que bem pouquinho, então se você tiver interesse, corra. O maridão definiu o filme do diretor esquisitão dinamarquês Lars von Trier (dos fascinantes “Ondas do Destino” e “Dançando no Escuro”) como uma mistura de Sade e Brecht, e eu que pensava que ele nunca havia ouvido falar de nenhum dos dois, ó injustiça. Bom, este drama sobre a Nicole Kidman indo parar numa cidadezinha no meio do nada e comendo o pão que o diabo amassou é ótimo. Não é uma obra-prima, mas é impressionante. Os EUA andam ignorando a obra enquanto podem, e tem se falado bastante do anti-americanismo do diretor, que se orgulha de nunca ter visitado a terra das oportunidades. Mas, embora a trama aborde vários aspectos ianques – gangsters, depressão americana, os créditos terminam com fotos de miseráveis e música do David Bowie chamada “Young Americans” – “Dogville” é mais anti-humano do que qualquer coisa. É misantropia pura mesmo. Você vai odiar aquela cidade que, como um dos cartazes do filme aponta, pode estar tão pertinho da gente. “Dogville” não tem a mínima compaixão por crianças, velhos, negros,
pobres, cegos... Todos são vítimas e carrascos, menos a Nicole, coitada, que é só vítima, e põe vítima nisso. Mas o tema é tão, digamos, universal, que lembra barbaridades a Geni da música do Chico. Nicole é um poço de bondade, e a vila vai fazer de tudo para destruí-la. Ela pode até perdoar os habitantes, mas o roteiro não os perdoa jamais.Tá, tudo isso é instigante, mas o que me chamou a atenção mesmo foi a reação de parte da platéia. Poucas vezes presenciei um público tão hostil. Foi uma das piores histerias coletivas que já vi. Várias pessoas hostilizaram o filme do começo ao fim, com comentários sarcásticos e risadas de escárnio durante a projeção. Algumas foram embora logo, outras resistiram até o final, incomodando sem dó aqueles insanos (eu, por exemplo) que ué, tavam achando a história deveras interessante. O que esse pessoal esperava? Desde quando a Nicole é estrela de filmes de ação? Só posso culpar a desinformação, então lá vai o aviso aos navegantes. “Dogville” tem cenários minimalistas usados no teatro. Não há portas ou paredes, e o cachorro é pintado no chão. É filmado com câmera na mão operada pelo próprio diretor. Tem uma constante narração em off (pelo John Hurt), o que o faz bem literário. É dividido em nove capítulos que mais ou menos resumem o que vai acontecer. Entendeu? Deu pra sacar? Pô, é um filme de arte que dura três horas (sem nunca ser chato). Agora você já sabe. Se ainda assim quiser ver “Dogville”, comporte-se, por favor. Respeite aqueles que foram ao cinema pra ver isso mesmo. Olha, confesso que se todos os filmes fossem desse jeito, a coisa seria monótona. Mas a coisa já não é meio monótona com todas as superproduções hollywoodianas exatamente iguais? Existe público pra filme de arte em qualquer lugar do mundo, e recuso-me a acreditar que Joinville seja a exceção. A reação de animosidade de parte dos espectadores foi pareci
da com o tratamento que a cidadezinha dá à Nicole. Desconfio que o público ficou particularmente revoltado com os cenários. Esse cenário pertence ao teatro, e esses pagantes não vão ao teatro, Deus os livre. No cinema eles querem ver luxo, cenários que custaram o PIB de vários países juntos. Querem constatar que os produtores de um filme não pouparam recursos para sua melhor diversão. Olham pra “Dogville” como um tipo de cinema que é apenas um corpo estranho, e como tal merece ser expulso das telas. Sei que soa estranho eu, uma crítica irônica, falar de respeito. Mas demolir um filme num texto é bem diferente de fazê-lo em voz alta durante a sessão, ou não?