Um microcosmo da sociedade, onde carros não servem pra nada.
um bando de coisas em Ensaio sobre a Cegueira (leia a primeira parte da crítica aqui). Por exemplo, um sinal que a direção é de um brasileiro, não de um americano, é que o único menino do filme não é um mini-gênio que salva o dia, e sim um ser indefeso. Outra: adorei o subtexto sobre o racismo, que não existe no livro do Saramago, por tratar de uma população que não é multirracial. No filme temos negros, latinos, e asiáticos, e isso traz toda uma nova dimensão. Um personagem diz “Não vou seguir ordens de um negro”. O racista, cego, assume que um vilão só pode ser negro. E o Danny Glover (responsável por uns breves trechos de narração em off que não funcio
nam muito bem), negro, afirma que pra ele é bom que ninguém veja. É de se pensar: em que momento seria benéfico se todos fossem cegos, se nem assim acabaríamos com o racismo e a objetificação das mulheres? Há cenas apavorantes, como a de um cara que entra na esquina errada e se perde do grupo - e assim, provavelmente, deixa escapar sua chance de sobrevivência. Eu também queria saber por que em tantas histórias apocalípticas os momentos mais emocionantes envolvem cachorros? E li no blog do F
ernando Meirelles (desatualizado há séculos) que, numa sessão-teste, o público canadense vibrou como se estivesse vendo Desejo de Matar durante uma cena-chave e, por isso, ele atenuou o troço. Tá, entendo, mas eu torci de qualquer jeito quando a Julianne Moore dá o troco aos cegos malvados. “Agora nós fazemos a cobrança” poderia virar slogan de u
ma nova geração feminista, se nós fossemos vingativas. Não gostei muito da musiquinha meio irônica, meio brincalhona, sei lá, nada séria, no instante mais chocante de Cegueira, que é quando as mulheres vão à Ala 3. Pareceu que nessa hora o filme teve a mesma opinião dos carinhas que dizem que “não é nada de mais” uma mulher abrir as pernas em troca de comida. Ah, é natural que as fêmeas se ofereçam aos machos!
Mas não achei que as cenas de estupro são gratuitas. A situação toda é de torcer o estômago e desejar a pena de morte para alguns membros da espécie “humana” (se vocês preferem assim). É muito interessante que, normalmente, em situações-catástrofe, tanto cinema e literatura nos ensinam que prevalece a velha camaradagem masculina. Os homens se juntam pra defenderem suas mulheres, e no processo descobrem os verdadeiros laços de amizade, o chamado male bonding (que exclui as mulheres, pois prega que fêmeas não são páreo intelectual pro
s machos; têm apenas serventia sexual). Em Cegueira não é isso que ocorre. A cumplicidade demonstrada é toda entre mulheres. Julianne acaba ficando mais íntima da moça de óculos escuros (interpretada pela brasileira Alice Braga, que está se especializando em fim de mundo - era ela em Eu Sou a Lenda) que do próprio marido. Apesar do filme não nos mostrar muito da vida de cada personagem pré-apocalipse, ele dá a entender que, se um cara já era competitivo, mau caráter, e agressivo ante
s da crise, provavelmente continuará a ser um crápula depois. Ele já não sabia conviver em sociedade antes. Só que, na civilização, isso se resumia a conversar no cinema, jogar lixo no chão e tratar as mulheres como lixo. Ou seja, coisas bastante toleradas no nosso dia a dia. Com o fim da civilização e de regras básicas de boa convivência, o sujeito apenas amplia o seu leque de opções: v
ai roubar e estuprar à vontade. O mundo será o seu playground particular. Como fazem os homens logo no início de Madrugada dos Mortos, sem serem cegos. E inclusive antes de se transformarem em zumbis. Infelizmente, pra alguns homens, virar zumbi sanguinolento comedor de gente serviria pra suavizar o comportamento.
O primeiro cego, desesperado dentro do carro.