Ao tentar me lembrar do primeiro filme que vi na vida – e falhar miseravelmente -, veio uma nostalgia que não tem nada a ver com o tema. Me lembrei do meu primeiro emprego com carteira assinada (antes disso, tinha apenas dado aulas particulares de inglês e, pasme, algebra básica), aos 19 anos. Tal qual o Tarantino, trabalhei numa locadora de vídeo. Isso foi em 1986, imagina. O mercado de vídeo engatinhava, havia pouquíssimas fitas seladas, a imensa maioria piratas, e nem era tanta gente que tinha um
aparelho de videocassete. Eu vi um anúncio no jornal e consegui a vaga na então Montevídeo, que ficava na Consolação (vivi em SP entre 77 e 93). Era uma locadora de vídeo que também vendia montes de acessórios pras locadoras. Acho que o slogan era “o supermercado para o seu vídeo”, ou para a sua locadora, não sei. Eu tinha dois chefes que eu adorava e são meus amigos até hoje, o Paulo e o Elísio. Lembro que uma vez levei bronca por ser honesta demais com os clientes. Se alguém perguntava “Esse filme é bom?”, eu tinha que responder que, na minha opinião, não era, mas quem apreciava tal tipo podia gostar. Só que às vezes eu já condenava
um filme mesmo sem o cliente perguntar, e isso lógico que é errado (fiquei irada quando, décadas mais tarde, um atendente em Joinville me viu pegando o hiper-clássico Um Bonde Chamado Desejo e disse: “Ugh! Você vai pegar isso? Um cliente viu e não gostou”).
Havia uma confeitaria perto da locadora, onde eu comprava um bombom de café quase todo dia. Meu amado pai às vezes ia me buscar no trabalho, e a gente ia comer frango lá perto ou ia ao cinema, no Bijou. Pouco depois passei a emendar o trabalho na locadora com umas au
las particulares de inglês para um engenheiro que morava num prédio da Praça Roosevelt (ao lado da Montevídeo). Ele era um amor e foi meu primeiro amigo abertamente gay (meus pais tinham alguns amigos gays, mas eram amigos deles, não meus).
Não trabalhei na locadora muito tempo. Foram apenas alguns meses, e nem sei por que saí. Sei que eu levava dois ou três filmes por dia pra casa e estava ficando alienada. Só queria saber de cinema. Mas, depois de sair, mantive contato com meus ex-patrões. Eu andava de moto com o Paulo e às vezes a gente pegava um cinema à tarde. Continuo achando um luxo supremo ir ao cinema à tarde, no meio da semana. Pra mim essa sempre foi uma grande sensação de liberdade.
Já o Elísio era meu amigo noturno. Ele é uma das pessoas mais divertidas que conheço, e sempre foi um tanto louquinho. Seu programa era me levar pra passear pelo centro da cidade. A gente andava, andava, ria, conversava, e eu nunca tive um pingo de medo, apesar dos lugares escabrosos. Era um tour de SP by night. Fui observando que ninguém mexia com a gente porque ele tinha pinta de perigoso.
Segui trabalhando um pouquinho pra eles também. Eles mudaram a locadora pro Copan e, como havia muitos filmes sem capa, eu passei a elaborar algumas. Recortava fotos, colava, escrevia uma recomendação. Faz pouco tempo, o Elísio me disse que gosta de crer que essa minha experiência com capas de vídeo influenciou a minha “carreira” de crítica de cinema. Nunca tinha pensado nisso, mas faz sentido.
O Elísio vendeu a parte dele da locadora há anos, mas o Paulo mantém a locadora no Copan. Ele mal tem fitas de vídeo hoje, apenas dvds, embora guarde algumas das minhas capas. Quase toda vez que vou a SP procuro vê-los.