A “Chacina de Unaí” e a impunidade
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A “Chacina de Unaí” e a impunidade


Por Leonardo Sakamoto, em seu blog:

Em 28 de janeiro de 2004, quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego foram assassinados enquanto realizavam uma fiscalização rural de rotina na região de Unaí, Noroeste de Minas Gerais. O motorista Aílton Pereira de Oliveira, mesmo baleado, conseguiu fugir do local com o carro e chegar à estrada principal, onde foi socorrido. Levado até o Hospital de Base de Brasília, Oliveira não resistiu e faleceu no início da tarde. Antes de morrer, descreveu uma emboscada: um automóvel teria parado o carro da equipe e homens fortemente armados teriam descido e fuzilado os fiscais. Erastótenes de Almeida Gonçalves, Nelson José da Silva e João Batista Soares Lages morreram na hora. O caso ganhou repercussão na mídia nacional e internacional.

A Polícia Federal afirmou ter desvendado o crime seis meses depois, com o indiciamento de envolvidos, que incluíram os irmãos Norberto e Antério Mânica, família que é uma das maiores produtoras de feijão do país. O inquérito entregue à Justiça afirmou que a motivação do crime foi o incômodo provocado pelas insistentes multas impostas pelos auditores. Nelson José da Silva seria o alvo principal. Ele já havia aplicado cerca de R$ 2 milhões em infrações à fazenda dos Mânica por descumprimento de leis trabalhistas. Ambos chegaram a ser presos, mas hoje respondem ao processo em liberdade. Após isso, Antério foi eleito (em 2004, com 72,37% dos votos válidos) e reeleito (2008) prefeito de Unaí.

Também foram envolvidos os pistoleiros Erinaldo de Vasconcelos Silva (o Júnior), Rogério Alan Rocha Rios e William Gomes de Miranda; o contratante dos matadores, Francisco Élder Pinheiro (conhecido como “Chico Pinheiro”, já falecido) e os intermediários Humberto Ribeiro dos Santos, Hugo Alves Pimenta e José Alberto de Castro.

Em agosto do ano passado, três pistoleiros contratados para a matança foram julgados e, na madrugada do dia 31 de agosto, considerados culpados por um júri popular em Belo Horizonte. No dia 17 de setembro, ocorreria o início do julgamento de mais um grupo de acusados, incluindo Norberto Mânica.

Contudo, o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello suspendeu o julgamento, atendendo a um pedido dos advogados desse acusado, que tentam levar o júri para Unaí. Marco Aurélio quer que o STF decida qual cidade deve abrigar o júri de Mânica.

O Superior Tribunal de Justiça já havia decidido, em abril, que a “Chacina de Unaí'' seria julgada em Belo Horizonte. O ministro relator Jorge Mussi considerou procedente uma reclamação do Ministério Público Federal e afirmou que a criação de uma Vara Federal em Unaí, local dos assassinatos – usada como justificativa para transferência do julgamento pela juíza federal Raquel Vasconcelos Alves de Lima – não importaria para o caso. Segundo ele, a criação de nova vara com jurisdição sobre o município onde se deu a infração penal não implica em incompetência do juízo em que se iniciou a ação penal. De acordo com o STJ, a decisão da juíza – que em janeiro havia remetido o caso para Unaí – foi contra as decisões anteriores já tomadas pelo próprio tribunal, que havia confirmado o caso para Belo Horizonte, e cassou sua decisão.

Durante o debate sobre a admissibilidade dos embargos infringentes da ação penal 470, o chamado “Julgamento do Mensalão'', o ministro Marco Aurélio Mello fez um duro discurso em nome da responsabilidade do STF diante da opinião pública: “Estamos a um passo de desmerecer a confiança que no Supremo foi depositada''. E também afirmou: “Como servidor do meu semelhante, eu devo contas aos contribuintes”.

PEC do Trabalho Escravo

Por conta da morte dos quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego, em 2009, o 28 de janeiro se tornou o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, através de proposta do então senador José Nery.

E a ligação entre a chacina e o trabalho escravo contemporâneo não reside apenas na data escolhida para uma homenagem aos auditores.

Em 2004, a votação em primeiro turno, na Câmara dos Deputados, da Proposta de Emenda Constitucional que prevê o confisco de propriedades flagradas com escravos e sua destinação à reforma agrária ou a programas de moradia urbanos ocorreu sob a forte comoção pública gerada pelo assassinato dos quatro funcionários do MTE.

Isso influenciou na decisão dos deputados, que aprovaram o texto. Parlamentares que eram contrários à aprovação da PEC, na votação em plenário, feita por voto aberto, posicionaram-se a favor, provavelmente para não terem sua imagem vinculada à manutenção dessa forma de exploração do trabalho em um momento delicado como aquele, em que a Chacina ainda aparecia na mídia internacional. Tanto que, após o primeiro turno na Câmara, não foi possível colocar a matéria para a segunda votação devido à ação de deputados da bancada ruralista.

Após oito anos de pressão de governo federal, parlamentares favoráveis à proposta, sociedade civil, sindicatos, artistas e intelectuais e algumas entidades que reúnem empresas, conseguiu-se aprovar a PEC do Trabalho Escravo em segundo turno na Câmara, em maio do ano passado, e a pautar o tema no Senado.

Os contrários à ideia, porém, bateram o pé: a PEC só seria colocada em votação pelos senadores caso uma regulamentação fosse discutida antes, a fim de ser aprovada logo após a votação da PEC. Ou seja, se os termos e procedimentos para o confisco fossem colocados no papel. Até aí, tudo bem. Mas, no meio do caminho, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), relator do projeto de lei para a regulamentação, atendeu ao pedido da bancada ruralista e usou um conceito diferente de trabalho escravo do que aquele que está no artigo 149 do Código Penal. Uma definição mais restrita.

De acordo com o artigo 149, são elementos que determinam trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais que coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador), jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).

A legislação brasileira, pasmem, é de vanguarda, pois considera que quando um trabalhador mantém sua liberdade, mas é excluído de condições mínimas de dignidade, também está caracterizado o trabalho escravo. Vira e mexe ouve-se o argumento de que fiscais do trabalho consideram como trabalho escravo a pequena distância entre beliches, a espessura de colchões, a falta de copos descartáveis, o que não é verdade.

Há até um manual do Ministério do Trabalho e Emprego explicando o que é e o que não é trabalho escravo, reunindo as normas e instruções normativas a respeito, que estão acessíveis a todos os empresários para download na internet. Para lê-lo, basta clicar aqui. Mas a bancada ruralista afirma que não há clareza sobre o conceito de trabalho escravo, porque não concorda com o conceito brasileiro.

Mais de 3 mil propriedades foram fiscalizadas por denúncias de trabalho escravo desde 1995, quando o Brasil criou o seu sistema de combate ao crime. O país tem mais de 4,5 milhões de propriedades rurais. Mais de 45 mil pessoas ganharam a liberdade desde então, em um universo de quase 18 milhões de trabalhadores no campo. Se a grande maioria de empresários, no campo e na cidade, segue a lei e não utiliza trabalho escravo, a quem interessa tornar a legislação mais frouxa? A quem interessa proteger quem promove a concorrência desleal e o dumping social, cortando custos ilegalmente para ganhar competitividade através da exploração de seres humano? E, de lambuja, manchar o nome dos nossos produtos no exterior?

Governo federal e parlamentares estão atuando para corrigir a proposta de regulamentação deturpada do senador Romero Jucá após a aprovação da PEC do Trabalho Escravo, para que a medida não se torne um ovo de serpente. Poucas vezes a aprovação de uma medida tão simples representou tanto simbolicamente. É só uma regulamentação, mas nela repousa a luta entre o respeito à dignidade humana e a barbárie.

Da mesma forma que a punição aos mandantes do crime cometido há dez anos é mais do que Justiça. É a certeza de que temos um Estado que protege a dignidade de todos acima dos interesses econômicos de alguns.

Em novembro de 2008, Antério Mânica foi um condecorados com a Medalha da Ordem do Mérito Legislativo, em cerimônia promovida pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, realizada no Palácio das Artes e “aplaudida por mais de mil convidados”, como explicou o site da própria instituição. O prêmio, que foi considerado por muitos como um desagravo, gerou indignação e mal-estar em parte da sociedade civil e dos deputados mineiros.

A impressão que fica é de que a velocidade de funcionamento de grande parte do sistema judiciário continua dependendo de quem é o réu/acusador. Se for rico, será rápido (se ele quiser que seja rápido) ou lento (se quiser que seja lento) e tende a ser julgado conforme suas conveniências, antes ou depois dos demais acusados e no lugar que melhor lhe aprouver (se assim for melhor para sua defesa). Se for pobre ou se pobres forem os assassinados, a Justiça faz o caminho inverso.
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