A CARA DA PROFISSÃO MÉDICA
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A CARA DA PROFISSÃO MÉDICA


Esta semana eu (e mais um monte de gente) fiquei chocada com a notícia sobre a recepção aos médicos cubanos. Aqui mesmo onde moro, em Fortaleza, foi tirada a foto abaixo, que correu o Brasil: um médico cubano, negro, é insultado por manifestantes do Sindicato dos Médicos do Ceará. A notícia diz que os cubanos foram chamados de "escravos" e "voltem pra senzala".

Alguém por favor avisa esses manifestantes (na foto, essas), médicos ou estudantes de Medicina, pela imagem todos brancos, que não é possível chamar um negro de escravo impunemente? 
Porque, sabe, durante séculos os negros foram escravos. É totalmente diferente eu, branca, dizer "Trabalhei feito uma escrava ontem", de uma pessoa negra falar a mesma coisa. Meus antepassados não foram explorados, torturados, mortos, trazidos em navios negreiros para sobreviverem, em média, vinte anos (a expectativa de vida de um escravo negro). Se bobear, meus antepassados exploraram negros, valendo-se de uma ciência e religião racistas que tentavam justificar essa exploração. 
É terrível demais ver uma imagem dessas, de médicxs achando tudo bem chamar um negro de escravo. Essas são as mesmas pessoas, provavelmente, que são contra as cotas raciais (e sociais também). Porque elas acreditam em meritocracia, e sentem-se bem crendo que mereceram vestir um jaleco branco. Só que quando você acredita que "chegou lá" por mérito, você tem que acreditar que os que não chegaram nem perto de "chegar lá" também mereceram. E, pra acreditar nisso, você terá que fingir que uma história de séculos de opressão nunca aconteceu. 
Escravos negros eram analfabetos. Não porque queriam, mas porque era contra a lei ensiná-los a ler e escrever. Eles eram escravos, não tinham nada. E, quando finalmente veio a abolição, que é bem recente (125 anos não são nada em matéria de história), os negros não foram indenizados pelos trezentos anos de exploração. Não. Eles foram considerados livres e prontinhos pra competir de igual pra igual com os brancos. Como pode haver igualdade de oportunidades se a linha de largada é tão torta?
Não vou nem repetir os indicadores sociais que apontam uma ampla distância ainda hoje entre a situação de brancos e de negros e pardos, porque imagino que até os racistas conheçam esses indicadores. Vamos falar só da área de medicina. Sabe quantos estudantes concluintes de Medicina no Brasil são negros ou pardos? 2,66%. Num país em que negros e pardos são maioria da população, como explicar uma estatística dessas? Será que negrxs não querem ser médicos, nem engenheiros, nem advogados, nem juízes, nem deputados e senadores, nem presidentes? 
E será que mulheres negras querem ser empregadas domésticas? A grande maioria das empregadas brasileiras é negra ou parda. No Recife, por exemplo, 81% são negras. 
Nunca vou me esquecer de quando contei a um grupo de alunos adolescentes brancos, da elite de Joinville, que uma mulher negra no Brasil ganha 50% menos que um homem branco, e eles responderam, com escárnio: "Mas também, teacher, são todas empregadas!" Nenhum questionamento deles sobre por que o serviço doméstico seja a terceira atividade que gera mais empregos para mulheres, ou por que uma profissão tão desvalorizada e que paga tão mal seja exercida por negras, ou por que o salário de uma empregada e de um, sei lá, médico, é tão díspar. 
Esta terça, uma jornalista do Rio Grande do Norte foi manchete por externar o preconceito de tantos brasileiros. Ela disse:
Pois é. Num país em que 97% dos médicos são brancos, e em que 60% das empregadas domésticas são negras, ver uma médica negra deve ter embaralhado a cabeça da jornalista. 
Só que Cuba não é esse país. A julgar pelas fotos dos médicos cubanos que desembarcaram no Brasil, parece que lá negras e negros têm oportunidade de chegar a ser médicos. Aqui, não. Isso é bom? Devemos ter orgulho da nossa educação elitista, do nosso racismo?

Tenho lido tanta idiotice sobre a vinda dos médicos cubanos... Algumas coisas só por eles serem de Cuba, lógico, o país mais odiado do mundo pelos reaças de qualquer lugar. Daí pros reaças dizerem que médicos cubanos são agentes comunistas disfarçados de empregadas médicas é um pulo. Dizem também que o Brasil estará financiando a ditadura de Fidel, e que a medicina cubana é péssima, porque, né, com nosso eterno complexo de vira-lata, acreditamos piamente que nada de qualidade possa surgir na América Latina. 
Li também que, se o médico fosse de Harvard, aí tudo bem ("eu até inventaria uma doença pra ser tratado por ele", disse um reaça). Outro afirmou que, se os médicos fossem suíços, não cubanos, eles certamente não precisariam fazer exame nenhum de revalidação, porque estariam automaticamente qualificados a dar aulas de medicina pros médicos brasileiros. Nenhum racismo nessa afirmação, por supuesto (ou você consegue imaginar um país mais branco que a Suíça?). 

Jamaicana é diretora do OPAS
Embora eu seja a favor da vinda de médicos de fora para atuar em municípios brasileiros onde os médicos daqui não querem ir, eu fico com um pé atrás com a brecha legal que pode ser aberta por profissionais que atuarão aqui estarem sujeitos às leis trabalhistas de outro país (o salário de R$ 10 mil será pago à Organização Pan-Americana de Saúde, que o repassará ao profissional; segundo o ministro Padilha, outros cinquenta países que têm convênio com Cuba também fazem isso). 
E fico receosa com notícias de que alguns municípios pobres e pequenos demitirão seus poucos médicos (que recebem R$ 30 mil mensais) para ficar com os médicos estrangeiros, financiados pelo governo federal. Porque aí cairia por terra o argumento de que a vinda dos médicos de fora não afetaria em nada os médicos brasileiros (se bem que 84% dos contratados pelo programa Mais Médicos atuarão no interior do Norte e Nordeste, e os médicos brasileiros não estão exatamente fazendo fila pra trabalhar em Coari, AM. E também porque as prefeituras que demitirem médicos perderão recursos). 
Mas é igualmente preocupante, pra mim, ver médicos brasileiros boicotando o Mais Médicos, ou ver o presidente do Conselho Regional de Medicina de MG dizer que vai mandar a polícia onde tiver um médico cubano, "como fazemos com um charlatão ou um curandeiro", e que orientará "seus médicos" a "não socorrerem erros dos colegas cubanos".
É também revoltante ver matérias de médicos que burlam a lei e não trabalham. Ou que há muito mais estudante que faz Medicina pra ganhar bem do que pra atender à população. Ou que um dos gritos de guerra de médicos que se manifestaram diante do Ministério da Saúde foi "Somos ricos, somos cultos. Fora os imbecis corruptos". 

Mas nada disso foi mais chocante que ver médicxs branquinhos gritando "Voltem pra senzala" pra médicos negros. Porque "voltar pra senzala", num contexto em que nem 3% dos médicos brasileiros são negros, quer dizer voltar pra onde mesmo? Pruma profissão como a de empregada doméstica? Essa sim tem mais a cara da trabalhadora negra, é isso que você está dizendo?




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