A deusa da modernidade
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A deusa da modernidade



Rodrigo Constantino, para a revista VOTO

Muitos são aqueles que depositam uma fé quase absoluta no poder da ciência. De fato, o avanço obtido nos últimos séculos graças à ciência é realmente espantoso. Para ficar num único exemplo, a expectativa média de vida nos países mais desenvolvidos dobrou em tempo relativamente curto, ultrapassando hoje a marca de 80 anos. Pode-se falar também das inúmeras doenças que antes matavam e atualmente possuem tratamento e cura. Mas será que isso tudo produziu um otimismo exacerbado com o poder da ciência?

Acredito que sim. E vou além: penso que um dos sintomas da modernidade é justamente esta esperança religiosa na onipotência científica. Com a “morte” de Deus decretada por Nietzsche, muitos órfãos foram buscar na ciência uma nova deusa, capaz de nos oferecer algo próximo de uma vida “eterna” e também feliz. Constatar isso não é o mesmo que atacar a ciência, mas sim o cientificismo, ou seja, o mal uso da ciência. Quando se trata das ciências humanas, esta postura que eleva a ciência ao patamar divino é extremamente perigosa.

Quem talvez melhor antecipou esta tendência moderna foi Aldous Huxley, com seu “Admirável Mundo Novo”, escrito em 1932. O livro faz um importante alerta contra a esperança desmesurada na ciência para organizar sociedades e garantir a felicidade dos homens. Na distopia de Huxley, todos seriam condicionados desde cedo, acostumando-se a se sentir feliz com as imposições do Estado. Ao contrário de George Orwell em “1984”, não nos tornaríamos escravos pela vigilância ininterrupta do Grande Irmão, mas sim pela nossa própria fraqueza: a busca incondicional da “felicidade”.

A conversa entre o poderoso Administrador e o Selvagem, aquele que vivia à margem desta nova sociedade, reflete a essência da coisa quando o primeiro diz: “O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não têm medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem filhos, nem amantes, por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem. E se, por acaso, alguma coisa andar mal, há o soma. Que o senhor atira pela janela em nome da liberdade, Sr. Selvagem. Da liberdade!”

Mas se não é esta liberdade, esta consciência da morte, esta imprevisibilidade da vida, estas aflições em família, estas paixões todas que nos fazem justamente humanos! O que a sociedade “científica” retratada por Huxley produz são seres autômatos, robotizados, que apenas aparentam felicidade. Uma felicidade bovina, conquistada, quando necessário, à base de soma, a “droga da felicidade”. Reclamar o direito de sofrer, de viver as angústias da vida, isso era a postura absurda ali. Será que a sociedade atual, voraz consumidora de Prozac sob o mínimo sinal de sofrimento, não caminha nesta mesma direção? Quem suporta a angústia do outro atualmente?

O mundo moderno parece tão obcecado com esta “felicidade” a qualquer custo que um país, o Butão, chegou a criar o indicador de Felicidade Interna Bruta, em substituição ao Produto Interno Bruto. O renomado economista Jeffrey Sachs tenta exportar a idéia para o mundo todo. Não importa que felicidade seja algo totalmente subjetivo. Não importa que nem tudo na vida seja a felicidade, ou pior, a aparência de felicidade. O objetivo é criar uma legião de “happy people”, que acha graça de tudo e foge das angústias como o diabo foge da cruz. Quando bate algum sofrimento, não tem problema: temos o soma, o Prozac, os programas de televisão, o Ipad. Quem liga para a concentração de poder no governo quando se pode assistir em paz o futebol ou o carnaval?

É proibido sofrer. Este parece ser o lema da atualidade. Adicionaria mais um: é proibido morrer! A ciência vai nos trazer a sonhada imortalidade. Viveremos 150 anos em breve, ou mais! Esquece-se de perguntar apenas uma coisa: qual vida? A paranóia com a saúde perfeita é outro claro sintoma da modernidade. A obsessão com os alimentos, a cruzada moral anti-tabagista, tudo isso aponta para uma sociedade doente. Não do corpo, mas da mente. Não vamos esquecer que os nazistas também compartilhavam dessa meta da “higiene total”.

Recentemente, assisti a um ótimo filme, “Sem Limites”, com Bradley Cooper e Robert De Niro. Trata-se da história de uma nova droga que aumenta exponencialmente a inteligência e a concentração do usuário. Uma espécie de metanfetamina elevada a enésima potência. Uma vez mais, é a ciência oferecendo o sonho da onipotência humana. Hoje em dia, loucos são os que desconfiam deste poder divino da ciência. Tal qual o alienista de Machado de Assis, aguardamos ansiosos o sábio Simão Bacamarte para nos curar da loucura. Qualquer sinal de desequilíbrio emocional, detectado pela ciência e pela Razão, será suficiente para ser trancafiado na Casa Verde. Como no livro, o mais louco de todos acaba sendo aquele que pensa ser o mais racional e científico.




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