Por Geraldo GalindoO Brasil assistiu a duas recentes manifestações públicas de grande repercussão: no dia 16, pelo impeachment e a volta da ditadura, e no dia 20, em defesa da democracia e pela ampliação dos direitos. Os líderes e aderentes das marchas que defendem o rompimento com a legalidade democrática usam suas tribunas para refutar a pecha de golpistas, argumentando que não há risco para a democracia, porque o ex-presidente Collor fora defenestrado e a democracia se manteve sem ruptura institucional. Há até mesmo setores da esquerda que discordam da caracterização de golpista a tentativa de encurtar o mandato da presidente Dilma, com a mesma argumentação das forças conservadoras, de que a democracia seria preservada.
Essa argumentação é rigorosamente falsa, e não pode haver ilusão entre nós sobre qual o conteúdo que está por trás da movimentação dos reacionários a ameaçar a legalidade constitucional. Tenhamos absolutamente claro que estamos correndo sérios riscos de na eventual possibilidade da queda de Dilma, passarmos por momentos sombrios, tenebrosos. Dito isso, vamos analisar rapidamente o movimento que destronou o então caçador de marajás eleito com apoio da mídia e da direita brasileira.
Quando milhões de jovens e trabalhadores brasileiros ocuparam ruas e praças exigindo o “Fora Collor”, não havia entre as bandeiras dos manifestantes, nada parecido com o que estamos a assistir na escalada de ódio e intolerância das marchas golpistas. O povo estava na rua pra exigir o afastamento do presidente com bandeiras democráticas, as denúncias de corrupção eram acompanhadas de duras críticas ao estágio inicial da dolorosa experiência neoliberal no país.
Não se tem conhecimento naquela histórica e grandiosa jornada, da existência de um único manifestante a pedir o retorno da tortura e assassinatos de opositores, a extinção de partidos, a morte do presidente. Aquelas manifestações tinham caráter resolutamente democrático, não havia espaço para bandeiras de cunho obscurantista, retrógrado e preconceituoso. Nas passeatas atuais, o que temos visto é somente ódio e intolerância. Os ataques às sedes do PT e a bomba que explodiu no Instituto Lula, bem como as agressões físicas e verbais a dirigentes e personalidade do partido de Lula, não são manifestações isoladas, elas estão no contexto da escalada reacionária e antidemocrática em curso, estimuladas pela mídia venal e corrupta.
Durante a luta pelo impeachment de Collor existia uma CPI que funcionava na lógica democrática, com amplo direito de defesa e as regras jurídicas obedecidas. Não havia um aparato incrustado na máquina do estado a trabalhar incessantemente para implodir o mandato presidencial. Não havia a figura de um Sérgio Moro com tantos poderes para ao bel prazer prender e desmoralizar pessoas públicas sem provas, obedecendo basicamente a interesses partidários. Não havia uma Polícia Federal a funcionar como polícia política a serviço de um partido político e muito menos um Ministério Público infestado de reacionários a se promoverem "combatendo a corrupção", desde que não seja do PSDB, partido no qual votam e fazem campanha. E por fim, não existe nenhum elemento comprobatório da participação da presidenta em práticas ilegais, o que não foi o caso do ex-presidente alagoano.
Quando afirmamos que paira uma grave ameaça contra nossa democracia - e não acho que um país com tamanha desigualdade possa se considerar democrático, mas usaremos o termo apenas para se distinguir da ditadura -, não é para provocar terrorismo vulgar. O que poderia acontecer caso a presidente seja deposta pela pressão dos grupos que estão na rua a exigir a renúncia ou impeachment? O cenário mais provável para essa hipótese seria uma onda de ataques às liberdades democráticas, à liberdade de organização, à liberdade partidária, ao funcionamento das entidades dos movimentos sociais e partidos políticos de esquerda. A propósito, esses ataques já estão em curso mesmo com a presidenta se mantendo heroicamente no cargo, suportando uma pressão até maior do que aquela que levou Getúlio ao suicídio. A agenda regressiva encaminhada por Eduardo Cunha, o herói dos marchadores golpistas, são exemplos claros das ameaças que cito.
Sem a presidente Dilma no comando da nação, e com a poderosa força da direita que tomou as rédeas de parte do aparato do estado, aqueles que se rebelam contra a trama golpista e lutam por bandeiras democráticas, poderiam se transformar em alvo fácil da reação. A criminalização da esquerda e movimentos sociais, já verificada nos oito anos de FHC, poderia ser retomada em escala de perseguição política aberta. Nada impediria que figuras do judiciário como Sérgio Moro, a PF e o MP concluam que os militantes de esquerda sejam corruptos e que, portanto, devem ser presos sem direito de defesa. Se na vigência do atual governo, os sigilos bancários e telefônico de um ex-presidente, com prestígio nacional e internacional, são quebrados à luz do dia e encaminhados livremente à imprensa, o que esses agentes não poderiam fazer em circuntâncias mais favoráveis às suas ações ilegais e imorais?
As gangues de extrema direita que participam ativamente das marchas golpistas, aquelas que repelem homossexuais, negros, mendigos, índios, nordestinos e pobres em geral, se sentiriam à vontade para promover suas nefastas provocações. Os grupos de extermínio – braço extra-oficial das polícias -, se sentiriam estimulados a intensificar o assassinato dos jovens pobres e negros das periferias. As manifestações de racismo, xenofobia e ataques ao estado laico e tantas outras, estariam fortalecidas num cenário pós-impeachment. O programa Mais Médicos, a democratização do acesso às universidades, as políticas de redução das desigualdades regionais, a valorização do salário mínimo e demais políticas sociais que melhoraram a vida de milhões, estariam ameaçadas.
A proposta de extinção dos partidos de esquerda - colocá-los na clandestinidade como na época dos generais - vem sendo repetida à exaustão e de forma unitária por manifestantes e parlamentares de direita. Ela poderia ser encaminhada sem maiores constrangimentos por seus proponentes. Para fazer esse exercício de especulação do que aconteceria caso o golpe vingue, recordemos o período já citado de FHC. Os movimentos sociais eram tratados como caso de polícia - basta lembrar o massacre de Carajás que ceifou a vida de 19 trabalhadores rurais sem terra no estado do Pará, governado por um prócere do PSDB. Não é sem razão que aquele longo período de intensa repressão política aos movimentos sociais, corrupção generalizada e entrega do patrimônio público pelo PSDB, foi caracterizado por alguns como ditadura civil
Parte dos promotores da marcha golpista também se incomoda quando enumeramos as semelhanças entre 1964 e 2015 - outra parte que convive fraternalmente com os primeiros, defende abertamente um golpe militar e lamentam que a ditadura não tenha exterminado todos os patriotas e democratas que resistiram ao regime que exilou, torturou e matou. O discurso – contra a corrupção e a ameaça do comunismo -, e os atores – mídia, partidos conservadores e fundamentalistas religiosos -, passados 50 anos, são essencialmente os mesmos. Há, sim, muitos aspectos que se repetem, mas não há no momento ambiente propício a um golpe militar clássico, o que não significa dizer que não há razões para se preocupar com uma eventual ofensiva de caráter repressor e antidemocrático.
O dia 20 de Agosto, com as memoráveis mobilizações em várias partes do país, deu uma bela demonstração ao nosso povo de que ainda temos um contingente expressivo, mesmo em circunstâncias bastante adversas, com disposição para resistir às investidas golpistas e defender reformas estruturais como saída para a crise política e econômica. Nenhum desânimo na militância de esquerda cabe no momento. A luta continua.
* Geraldo Galindo é secretário de comunicação e de movimentos sociais do PCdoB-BA.
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