A história que tanto desprezamos - MARCELO RUBENS PAIVA
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A história que tanto desprezamos - MARCELO RUBENS PAIVA


O Estado de S.Paulo - 21/09

Toda mudança de regime precede a desqualificação do anterior. Enquanto reis e czares são decapitados, fuzilados e exilados, a máquina de propaganda dos novos governantes reescreve a história, satiriza antigos governantes e cria um novo álbum de ícones.

De Lucrécia Bórgia, ficou a fama de uma bastarda incestuosa, manipuladora e descontrolada. Maria Antonieta virou a deslumbrada palaciana, que fez o povo passar fome para suprir seus caprichos. Os Romanovs estavam hipnotizados pela barba e magia negra de Rasputin, enquanto o império ruía estepe abaixo.

A monarquia brasileira sofreu na mão da historiografia republicana. De Pedro I, ficou a fama de um mulherengo incorrigível. Teria proclamado a Independência numa mula, depois de uma parada para se aliviar, vítima de uma diarreia, a caminho de um prostíbulo às margens do Ipiranga. Pedro II, tímido, infeliz e solitário, manipulado pela oligarquia agrária, era um exótico rei num continente de novas repúblicas.

A República resgatou da Inconfidência Mineira o herói de que precisava, Tiradentes. O Golpe de 64 não teve como usar a iconografia do movimento que clamava liberdade. Deu sorte, porque estava em campo a geração Pelé, e foi buscar na ignorada família real lacunas que legitimassem o projeto de soberania nacional - numa grande operação, no sesquicentenário da Independência, os despojos de Pedro I foram trasladados do panteão de São Vicente de Fora para a cripta do Monumento à Independência, no Museu do Ipiranga.

O regime militar também financiou através da estatal Embrafilme o primeiro épico do cinema nacional, Independência ou Morte, de 1972, que foi proclamada por Tarcísio Meira desembainhando uma espada sobre um cavalo ao estilo da tela de Pedro Américo. Glória Menezes era Marquesa de Santos, retratada não como uma pulada de cerca que escandalizou os súditos, mas como o amor impossível do príncipe aprisionado por suas obrigações. Não foram mostrados outros affaires.

Carlota Joaquina, filme que representa a retomada do cinema nacional, depois do desmantelamento do entulho militar, é uma gozação sem dó da vinda da família real e de seus membros. Fez um baita sucesso entre nós, republicanos que anos antes votamos no plebiscito que decidiu se o País seria monarquista ou republicano controlado por um sistema presidencialista ou parlamentarista.

Laurentino Gomes traça um perfil menos tendencioso da Casa de Bragança do Brasil. Mostra em 1889 que Pedro II, alto e loiro, "Pedro da Mala", como Eça de Queiroz o chamou, pois nunca largava uma valise, não era a figura apagada e inerte que a República pintou. Conseguiu manter o Brasil unido e o Exército sob controle civil, enquanto os vizinhos se implodiam em repúblicas. Esteve no front de batalha da Guerra do Paraguai, gastava pouco, falava várias línguas, inclusive tupi, lia sem parar, usava adornos indígenas na roupa imperial, era amigo de Victor Hugo, Graham Bell, dispensava protocolos, nada rancoroso e vingativo, admirador dos positivistas que o derrubaram, foi tratado como estrela na viagem aos EUA em 1876 e pedia a jornalistas estrangeiros que o chamassem de Pedro Alcântara. Que avô de FHC propôs ser fuzilado.

A decisão para mudar o governo em 1889 estava tomada. Civis e militares não chegavam a um consenso se o que viria era um golpe contra a monarquia, alimentado pelo descontentamento na caserna, mudança ministerial, deposição ou a República. Em 6 de novembro, um grupo de revoltosos se reuniu na casa de Benjamin Constant, entre eles, o alferes Joaquim Inácio Batista Cardoso, do 9.º Regimento de Cavalaria em São Cristóvão.

Sem o apoio do descontente Deodoro da Fonseca, não dariam um passo. Planejaram agitação nos quartéis, estoque de armas. Constant, ex-professor dos filhos do rei, perguntou o que fazer com Pedro II. Joaquim Inácio, com 29 anos, propôs o fuzilamento, caso resistisse.

Joaquim Inácio era avô de um futuro presidente da República proclamada dias depois, o pacato, calmo, sociólogo de fala mansa, agora imortal da Academia Brasileira de Letras, Fernando Henrique Cardoso. Prevaleceu a proposta de Constant. Pedro II partiu para o exílio, onde morreu dois anos depois, aos 66 anos de idade, numa modesta casa em Paris.

Laurentino não se restringiu a uma ordem cronológica. Dividiu os capítulos por temas. E, como nos livros anteriores, 1808 e 1822, mostrou que a história brasileira, desprezada por muitos, foi, sim, feita com atos de heroísmo e derramamento de sangue. Muito sangue, por sinal.

Conseguiu traçar um retrato completo dos bastidores da Corte e da queda do imperador, que, apesar de ser um homem culto e com prestígio internacional, vivia uma contradição insolúvel, um monarca que defendia o republicanismo, num Brasil difícil de entender, que experimentou um período de muita liberdade, inclusive de expressão, sob os garrotes da escravidão, num mundo que se transformava rapidamente com as novas invenções do Século das Luzes, que tinham um entusiasta, o rei do Brasil - navio a vapor, telégrafo, cabos submarinos, eletricidade, fotografia, telefone, trem e carros.

Outra revelação de 1889: a agitada vida fora do casamento de dom Pedro II. Foram 14 amantes catalogadas, entre atrizes, damas de corte, mulheres casadas, paixões platônicas e concretizadas, que se aconchegaram nas barbas do imperador. "Que loucura cometemos na cama de dois travesseiros", escreveu em 1880 para Ana Maria de Albuquerque, condessa de Villeneuve, mulher de Constâncio de Villeneuve, dono do Jornal de Commercio. "Não consigo mais segurar a pena, ardo de desejo de te cobrir de carícias."

Outras: Anne de Baligand, Vera de Haritoff, Eponine Octaviano, ex-mulher do amigo de infância, e a mais notória, a baiana Luísa Margarida Portugal de Barros, condessa de Barral, morena de grandes olhos negros, filha de fazendeiro do Recôncavo, que deixou 300 íntimas cartas de dom Pedro II para ela sem queimá-las, como tinha sido solicitado. "Olho sempre com imensas saudades para o quartinho do anexo do Hotel Leuentorh", escreveu Pedro II em 1876, indicando o lugar em Petrópolis em que se encontravam.

Puxou o pai, mas preservou a imagem de marido fiel. Um come quieto.




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