A maldição da linguagem racial - DEMÉTRIO MAGNOLI
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A maldição da linguagem racial - DEMÉTRIO MAGNOLI


O GLOBO - 27/03

Carolus Linnaeus (Lineu), o pai fundador da taxonomia biológica, sugeriu uma divisão da espécie humana em quatro raças: europeanus (brancos), asiaticus (amarelos), americanus (vermelhos) e africanus (negros). Naturalmente, explicou Linnaeus, a raça europeia era formada por indivíduos inteligentes, inventivos e gentis, enquanto os asiáticos experimentavam inatas dificuldades de concentração, os nativos americanos deixavam-se dominar pela teimosia e pela irritação e os africanos dobravam-se à lassidão e à preguiça. Isso foi em meados do século 18, na antevéspera do surgimento do ?racismo científico?. Como admitir que uma linguagem paralela seja utilizada por Ricardo Noblat, um jornalista culto e respeitado, na segunda década do século 21?
O presidente do STF, Joaquim Barbosa, moveu representação contra Noblat, acusando-o dos crimes de injúria, difamação e preconceito racial. Três frases numa coluna do jornalista publicada em O Globo em 18 de agosto de 2013 formam um alvo legítimo da representação criminal: ?Para entender melhor Joaquim acrescente-se a cor ? sua cor. Há negros que padecem do complexo de inferioridade. Outros assumem uma postura radicalmente oposta para enfrentar a discriminação?. Noblat resolveu ?explicar? Joaquim Barbosa a partir de presumidos traços gerais do caráter dos ?negros?: é Lineu, no século errado...
As três frases deploráveis ? e preconceituosas, sim! ? oferecem aos ?negros? as alternativas de sofrer de ?complexo de inferioridade? ou de arrogância, que seria a ?postura radicalmente oposta?. Contudo, no conjunto do raciocínio, há algo pior: a cassação da personalidade de Joaquim Barbosa, a anulação de sua individualidade. Joaquim não existe como indivíduo, mas como representação simbólica de uma ?raça?; ele é o que é pois ?sua cor? esculpe sua alma ? eis a mensagem de Noblat. Podemos aceitar assertivas sobre caráter e atitudes baseadas na ?raça? dos indivíduos? Essa é a questão que Joaquim Barbosa decidiu repassar para tribunais criminais.
O problema de fundo da representação é que o Estado brasileiro oficializou as ?raças?, por meio de políticas raciais adotadas pelo Executivo, votadas pelo Congresso e avalizadas pelo Judiciário ? inclusive, pessoal e diretamente, por Joaquim Barbosa. De acordo com as políticas raciais em vigor, fundaram-se ?direitos raciais? ligados ao ingresso no ensino superior, na pós-graduação e em carreiras do funcionalismo público. Os indivíduos beneficiários das cotas privilegiadas são descritos como ?representantes? de uma ?raça? ? do presente e também do passado histórico dos ?negros?. Foi o próprio Estado que introduziu a ?raça? (e, com ela, a linguagem racial!) no ordenamento político brasileiro. Os juízes que darão um veredicto sobre a ação contra Noblat provavelmente circundarão o problema de princípio ? mas isso não o suprime.
Na democracia, a linguagem tem importância maior que a força. A linguagem racial introduziu-se entre nós a partir do alto. Pais são compelidos a definir a ?raça? de seus filhos nas fichas de matrícula na escola. Jovens estudantes devem declarar uma ?raça? nos umbrais de acesso às universidades. Na política, a cor e a ?raça? converteram-se em referências corriqueiras. Lula da Silva invocou a cor da pele de Joaquim Barbosa como motivação para sua indicação ao Supremo (algo mencionado, aliás, em outra linha da coluna de Noblat). ?Brancos? e ?negros?, essas entidades da imaginação racial, transformaram-se em objetos discursivos oficializados. Joaquim Barbosa tem sua parcela de responsabilidade nisso, junto com seus colegas do STF.
Cotas raciais não existem para promover justiça social, mas para convencer as pessoas a usar rótulos de identidade racial. Anos atrás, um amigo dileto confessou-me que, para produzir artigos contrários às políticas de raça, tinha de superar uma profunda contrariedade íntima. Perdemos cada vez que escrevemos as palavras ?branco? e ?negro?, explicou-me com sabedoria, pois contribuímos involuntariamente na difusão da linguagem racial. Raças não existem ? mas passam a existir na consciência dos indivíduos quando se cristalizam na linguagem cotidiana. Caminhamos bastante na estrada maldita da naturalização das raças, como atesta a coluna de Noblat.
Na sua defesa, Noblat talvez argumente que apenas jogou de acordo com as regras implícitas nas políticas de raça julgadas constitucionais por um STF pronto a ignorar as palavras da lei sobre a igualdade entre os cidadãos. Seu advogado poderia dizer que o jornalista não inventou a moda de julgar as pessoas pela cor da pele ? que isso, agora, é prática corrente das autoridades públicas e das universidades. Mas ele continuará errado: a resistência à racialização da sociedade brasileira exige, antes de tudo, que se rejeite a linguagem racial. Temos a obrigação de ser subversivos, de praticar a desobediência civil, de colocar os termos ?raça?, ?brancos? e ?negros? entre as devidas aspas.
A ?pedagogia da raça? entranhou-se nas políticas de Estado. Dez anos atrás, um parecer do Conselho Nacional de Educação, que instruiu o ?Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana?, alertou os professores sobre ?equívocos quanto a uma identidade humana universal?. Segundo o MEC, os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos constituem, portanto, ?equívocos?: humanidade é uma abstração; a realidade encontra-se nas ?raças?.
As três frases de Noblat, que abolem a individualidade de Joaquim Barbosa, situam-se no campo de força daquele parecer. A resposta antirracial a elas pode ser formulada em duas frases simples ? mas, hoje, subversivas: ?Joaquim Barbosa é igual a todos os demais seres humanos, pois existe, sim, ?uma identidade humana universal??; e ?Joaquim Barbosa é um indivíduo singular, diferente de todos os demais seres humanos, que são diferentes entre si?.




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