Geral
À margem das vanguardas - FERREIRA GULLAR
FOLHA DE SP - 07/07
A linguagem de formas suntuosas de Grassmann está impregnada de certa malignidade e requinte
A morte de Marcelo Grassmann, ocorrida no dia 21 de junho, significa uma enorme perda para a arte brasileira, já que ele foi, além de gravador e desenhista de extraordinária qualidade, uma personalidade original, criador de um mundo imaginário único e fascinante.
Grassmann começou como aprendiz de metalúrgico, para depois matricular-se na Escola de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, onde aprendeu a técnica da gravura em metal.
Logo em seguida, isto é, no começo da década de 1950, a arte brasileira sofre uma mudança radical com o surgimento da arte concreta, de linguagem geométrica e construtiva. Esse fato determinou uma ruptura drástica com a tradição modernista brasileira, surgida nos anos 20 e caracterizadamente figurativa e de temática nacional, ainda viva, àquela época, na pintura de Lasar Segall, Di Cavalcanti e Portinari.
A partir de então, a nova geração de artistas plásticos abandonou a arte figurativa e voltou-se para um tipo de expressão essencialmente geométrica, construtiva e objetiva.
Era, portanto, um tipo de expressão no extremo oposto à gravura de Marcelo Grassmann, àquela altura um jovem de 20 e poucos anos.
A nova tendência tomou conta do ambiente artístico, mas, apesar disso, o jovem gravador não se afastou um milímetro da opção artística que fizera: enquanto os demais pintavam formas geométricas, ele desenhava e gravava cavaleiros medievais, munidos de armadura, lança e capacete.
Eu que, àquela época, era também um jovem e interessado nas artes plásticas, não cansava de admirar a firmeza de Grassmann, que mergulhava num universo arcaico, demoníaco, figurativo, tido então como um anacronismo estético e ideológico, mas, apesar disso, fascinante.
Conheci Marcelo Grassmann em 1952, no apartamento de Mário Pedrosa, o principal defensor do movimento concretista, mas que tinha sensibilidade e amplitude intelectual suficientes para reconhecer o valor de manifestações diversas daquela, como a arte do jovem gravador paulista. Magrinho, alto, com o queixo levemente torto, sorria irônico das ideias da vanguarda. Mário não discutia com ele, mas simplesmente elogiava a qualidade e expressividade de suas gravuras. Embora, por seu físico, distante da prática esportiva, teve, na época, como namorada, uma moça musculosa que praticava boxe.
Os anos se passaram, aliás, décadas. A arte concreta esgotou sua proposta, em seu lugar nasceu a arte neoconcreta, audaciosa e inventiva, com os "Bichos" de Lygia Clark, as esculturas de Weissmann e Amílcar de Castro. Mas, logo, no lugar dela, surgiu a pop arte e, depois, a chamada arte contemporânea, que dispensa linguagem e critérios estéticos.
Tudo isso aconteceu sem abalar em nada a persistência de Grassmann na exploração de seu mundo imaginário, habitado por seres estranhos e satânicos, que mais parecem delírios que coisas reais.
Dizem que sua arte tem raízes no gótico, talvez por evocar o mundo noturno das gárgulas e das harpias. Na verdade, sua linguagem de formas suntuosas e estranhas está impregnada de certa malignidade e requinte, como se observa naquela gravura em que dois guerreiros medievais parecem arrastar para as profundezas da noite uma figura angelical de adolescente, enquanto seus capacetes metálicos relampejam como joias malditas.
Semelhante contraste parece constituir a matéria poética de sua arte perturbadora. Mas a essência dela não se limita a essa temática visionária; reside, de fato, na qualidade gráfica, que identifica linguagem e tema: é que aqueles seres estranhos, sejam demônios ou bestas satânicas, nascem dessa linguagem, do emaranhado de traços, das manchas negras, dos lampejos inusitados, que constituem seu universo imaginário. E é essa expressividade estética e visionária que torna sua arte surpreendentemente atual, enquanto muita obra daquelas vanguardas já não nos diz nada.
De certo modo, fazer arte é soprar espírito na matéria. Se isso é verdade, Marcelo Grassmann, em seus melhores momentos --ou quase sempre--, alcança esse nível de transmutação. Ali, cada linha, cada zona de luz ou treva, vira expressão, que assimilamos integralmente. É que a obra-prima não deixa resto.
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