Por Mino Carta, na revista CartaCapital:Um conto de Hans Christian Andersen, entre muitos outros, encantou a minha infância, A Roupa Nova do Imperador. Mas tem condições de encantar também a idade adulta. É a história dos vendedores de fumaça que com ela vestem o soberano, parvo e miseravelmente enganado, pronto a desfilar diante dos súditos aglomerados na praça certo de envergar roupas de seda e veludo. Até que um menino perdido no meio da multidão, voz da inocência, grita: “Ele está nu”. O enredo tornou-se lugar-comum para denunciar quem não consegue se esconder atrás de falácias.
Volta e meia a gente lê ou ouve que o “rei está nu” ao se contar o inútil esforço de algum graúdo pego com a mão na massa apesar dos seus disfarces. Chico Caruso, chargista na primeira página de O Globo, já desnudou os incriminados pela Lava Jato e, em outra charge, achincalhou as duas centenas de advogados, alguns dos réus da operação, que em janeiro passado divulgaram um manifesto para protestar contra irregularidades variadas cometidas ao longo da investigação.
Mauricio Dias em sua Rosa dos Ventos da edição passada criticou o chargista, e este se queixa agora com um texto postado no meu e-mail para defender seu trabalho, sem deixar de admitir que eu poderia ter autorizado “tal ataque”. Nada inspirei, nada autorizei, pelo simples fato de que CartaCapital nunca se permitiu censura interna, ou autocensura. Seus colunistas escrevem o que bem entendem. Chico trabalhou comigo na primeira IstoÉ e gozou do meu respeito e da minha amizade, mantida no decorrer de décadas, desde os tempos em que me apelidou “catapulta de talentos” com chiste amigo, saudável de todos os pontos de vista.
Esta não é uma resposta, é reflexão ampla. Impossível dialogar nas circunstâncias de hoje com quem acredita, como Chico Caruso, que “o Judiciário aponta uma nova direção para a nossa política”. Não está só.
Este gênero de peculiar humorismo é praticado pela larga maioria dos chargistas de jornalões, revistões, programões. As exceções contam-se nos dedos de uma única mão. De chofre, ocorre-me Laerte, artista fiel às suas crenças de sempre, a contradizer a linha do jornal que a publica.
Às vezes me toma o impulso de perguntar aos meus céticos botões como se deu que tantos, outrora a pretender professar ideias tidas pela reação como subversivas, tenham se identificado tão profundamente com as ideias dos seus patrões reacionários? E se, perguntaram por sua vez os botões, eles tivessem passado a compartilhar com total sinceridade o pensamento de quem lhes paga o salário?
Debandada geral. A mudança radical não se dá porque a ex-rapaziada deixou de votar no PT, ou porque se empenha em buscar obsessivamente razões para o impeachment de Dilma e para sepultar de vez qualquer veleidade eleitoral de Lula. CartaCapital sabe, e repete, que no poder o PT portou-se como os demais clubes recreativos envolvidos na arena política. Sabe, porém, e repete, que a tentativa de impeachment é francamente golpista e que os argumentos até o momento trombeteados para incriminar o melhor presidente pós-ditadura por ora o fortalecem de tão inconsistentes.
Certos entendimentos apoiam-se apenas na razão, assim como diferenças insanáveis se estabelecem a partir de percepções opostas, no bem ou, se quiserem, no mal. Quem não mudou de casaca enxerga no ódio de classe o porquê da campanha anti-Lula, incapaz de aceitar um operário nordestino na Presidência da República. E enxerga a distância que separa um país onde ainda permanecem de pé casa-grande e senzala da democracia e da civilização. E enxerga a incompetência dos senhores, inabilitados até ao capitalismo sonhado por Adam Smith: ao cuidarem exclusivamente dos seus interesses, condenaram um país exportador de commodities a viver até hoje uma Idade Média.
Cada qual tem direito a pensar o que quer, livremente. Trato somente de esclarecer a discrepância e a impossibilidade de diálogo. Anoto, também, a generalizada, epidêmica, avassaladora falta de graça. De um senso de humor que outrora conhecemos, de um lado e de outro, de Stanislaw Ponte Preta a Nelson Rodrigues, de Noel Rosa ao Pasquim, de Raymundo Faoro a Gilberto Freyre.
Entrego-me à releitura do conto de Andersen: a mídia nativa vende fumaça e, ao cabo, a realidade ficará nua.
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