Por Marina Terra, no sítio Opera Mundi:Eram cinco horas da manhã de 14 de abril de 2002. Hugo Chávez falava à nação pela primeira vez desde que, por meio da pressão popular e a lealdade de setores do Exército, foi resgatado da prisão após sofrer um golpe de Estado. Em seu discurso, houve um apelo especial, enfático, feito enquanto agarrava uma cruz entre as mãos. “Faço um chamado aos meios de comunicação. Por Deus! Reflitam, mas de uma vez por todas. Esse país também é de vocês (...)”.
Personagem ativa da derrubada da ordem democrática naqueles dias de abril de 2002, a mídia privada venezuelana ainda ocupa a maioria do espectro audiovisual e da imprensa 11 anos depois do golpe. E não se trata de um período qualquer da história da Venezuela. O aniversário do golpe de Estado contra Chávez acontece a pouco mais de um mês de sua morte e durante a disputa eleitoral para presidente, marcada para este domingo (14/04).
Segundo dados do Ministério da Comunicação da Venezuela, atualmente 60% do espectro televisivo aberto é explorado por empresas privadas. Em 1998, antes da eleição de Chávez, o número chegava a 80%. Nas rádios, as redes privadas são hegemônicas, o Estado só tem uma estação com alcance nacional e três estações em localidades estaduais. As empresas também são maioria na imprensa escrita, sendo mais de 80% do total de jornais.
“Antes da chegada de Chávez ao poder havia um acordo tácito entre as corporações da informação, que são porta-vozes do poder econômico, e o Estado”, afirma o jornalista venezuelano José Roberto Duque, que trabalhou no jornal El Nacional e é autor de livros consagrados no país. “O que acontece com Chávez [no poder]? A aliança entre o Estado e os consórcios de comunicação se rompe”, explica.
A partir daquele momento, começaram os ataques. “Em um cenário no qual o poder econômico entra em conflito com um Estado que alinha com as lutas populares e a reivindicação do povo, começa evidentemente uma guerra na qual a verdade é a primeira a morrer”, diz Duque.
Naquela época, as notícias começaram a ser deformadas a favor ou contra o projeto de Hugo Chávez. Enquanto alguns veículos preferiram simplesmente ignorar as declarações do governo, outros se empenharam em retratar o presidente como o líder de uma ditadura. É nessa ocasião também que o governo de Chávez cria seus meios de comunicação, “cujo discurso também começou a carecer de honestidade jornalística”, por produzir conteúdo que serve para defender ou elogiar o governo.
Em 2001, um conjunto de 49 leis habilitantes, que incluíam a lei de terras e hidrocarbonetos, detona o golpe, conforme analisa o jornalista Ernesto Villegas – atual ministro da Comunicação – em seu livro “Abril: Golpe Adentro”. Ali é estabelecida uma investida liderada pela Fedecámaras, entidade que reúne os empresários do país, e a mídia privada. Uma grande marcha foi convocada para 11 de abril em Caracas, propositalmente revertida para os arredores da sede do governo. No dia, o El Nacional estampava na manchete “A batalha final será em Miraflores”.
O resultado foi o “massacre de Ponte Llaguno”— nome de um viaduto próximo a Miraflores –, quando franco-atiradores dispararam contra a população, deixando 19 mortos e 70 feridos. Manipulando as imagens, rapidamente a Globovisión, um dos principais canais privados, responsabilizou o governo. Naquele dia, a Venevisión dividiu sua tela com, de um lado, imagens das micro-cadeias com a versão do governo sobre os acontecimentos, e do outro, mobilizações da oposição e atos de violência, em claro desrespeito às leis de comunicação do país.
À noite, Chávez foi detido por militares golpistas e em 12 de abril Pedro Carmona Estanga se autojuramentou como presidente da Venezuela, rasgando a Constituição e dissolvendo todos os poderes. Os meios de comunicação privados se ocuparam em legitimar o governo de facto, enquanto Chávez seguia preso.
De acordo com o livro Dias de Aluvião, editado por Federico Ruiz Tirado no ano passado, entre janeiro e abril de 2002, a distribuição de espaço na imprensa privada foi estatisticamente desequilibrada. Foram avaliados os jornais El Universal, El Nacional, Últimas Notícias, 2001 e Tal Cual. Cinquenta e cinco por cento da superfície redacional dava voz à oposição, enquanto 20% a Chávez e 16% ao governo.
Oitenta e cinco por cento dos termos negativos foram usados para qualificar o chavismo com frases como “comunistas” e “círculos violentos”. Os outros 15%, utilizados para adjetivar a oposição incluíam menções como “esquálidos”, “fascistas” e “golpistas”. Já os termos positivos formavam 70% das qualificações dos opositores, com termos como “povo pacífico” e “sociedade democrática”, enquanto do lado oficialista se lia “manifestantes” e “camaradas”.
Naqueles meses, 80% das primeiras páginas dos jornais falavam da oposição. Quanto ao tratamento gráfico dos líderes políticos, 38% era dedicado a Pedro Carmona Estanga, que se autonomeou presidente da Venezuela após o golpe de Estado, 37% ao líder opositor Carlos Ortega, e somente 25% a Chávez.
“Nos primeiros sete, oito anos de Chávez”, afirma Duque, se tornou impossível fazer jornalismo na Venezuela. “Todos tinham algo a dizer, contra ou a favor, mas ninguém quis fazer um jornalismo limpo, equilibrado, e isso se prolonga até hoje. É impossível fazer um exercício imparcial ou mais ou menos objetivo do jornalismo”, diz. Para ele, inexiste um compromisso com a credibilidade no país. “A quebra aconteceu em 2002”, salienta.
Hoje em dia, canais como a Globovisión, uma espécie de porta-voz da oposição, dizem ser perseguidos pelo governo, citando multas e acusações. Presidida por Guillermo Zuloaga, foragido da Justiça desde 2010, a Globovisión acumula processos judiciais, o mais recente por omitir em seus programas jornalísticos partes da Constituição ao noticiar o tema da posse de Chávez em 10 de janeiro desse ano.
Além disso, o caso RCTV (Radio Caracas de Televisão) segue sendo interpretado pela oposição como um violento atentado à liberdade de imprensa no país. Frequentemente campanhas pedem o retorno do canal, um dos mais populares na Venezuela até ser fechado, em 2007. Apesar de o governo dizer que na época decidiu utilizar o espectro ocupado pela RCTV para outra finalidade, para opositores essa decisão seria castigo pela participação da emissora no golpe contra Chávez em 2002.
Redes sociaisO apagão midiático ao qual a população venezuelana foi submetida naqueles dias de abril de 2002 aconteceu porque os principais meios eram controlados por opositores ao governo. Mas e se naquela época redes sociais como Twitter e Facebook – bastante populares na Venezuela – já existissem?
Segundo um estudo da consultoria espanhola IZO Innovation publicado em 2012, a Venezuela está em terceiro lugar no ranking mundial de penetração do Twitter e em sexto na América Latina em termos de horas conectadas por usuário por semana (20).
De acordo com a empresa de compilação de dados comScore, o país está em terceiro – atrás de Indonésia e Brasil – em penetração do Twitter entre usuários conectados, com 19% deles visitando o site diariamente. Ainda segundo a comScore, 86,9% dos usuários de internet venezuelanos possuem conta no Facebook, conforme dados de junho de 2011, quando a última pesquisa foi realizada.
Com o Twitter, o desenrolar do golpe na Venezuela poderia ter sido diferente, analisa Duque. “A surpresa talvez não tivesse sido tão dramática”. Para ele, porém, a internet e as redes sociais funcionam como uma ferramenta mais de um processo. “Não é uma trincheira para o ativismo. O espaço da política continua sendo as ruas.”
Ele usa como exemplo dessa reflexão um episódio emblemático que viveu em 12 de abril de 2002, quando formou parte da resistência popular nas ruas de Caracas. Logo após Carmona jurar como presidente, o jornalista estava na avenida Sucre, onde moradores construíram barricadas contra a polícia. Ninguém sabia o que havia acontecido com Chávez.
Até que um rapaz começou a distribuir alguns papeizinhos que diziam: “Hugo Chávez está sequestrado. Ele ainda é o presidente. Difundam”, conta Duque. “Eu estava com um amigo e pedi para que me desse vários, mas ele negou, porque tinha poucos. Depois seguiu compartilhando o que restava”, descreve. “Esse foi o Twitter daquele momento. Se ele existisse na época, esse homem teria feito o mesmo trabalho, mas de forma mais eficiente. Às vezes o importante não é a ferramenta tecnológica, mas a qualidade da mensagem passada”, diz.
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