Por Antonio Martins, no site Outras Palavras:
Precisamente no instante em que este texto for ao ar – às 12h de sexta-feira, 20/2 – começará em Bruxelas a primeira grande batalha entre o novo governo grego e os 19 ministros das Finanças da zona do euro, aflitos por enquadrá-lo. Será um encontro de algumas horas e enormes implicações globais. Desde 2009, a União Europeia é o território em que a aristocracia financeira – o 1% ou 0,1% de super-ricos do planeta – foi capaz de impor melhor sua resposta à crise econômica aberta um ano antes.
A rebeldia grega, aberta em 25/1, num pleito em que a população rechaçou este programa, ameaça muito mais que a renovação de um empréstimo, que vencerá em 28/2. Ela pode se espalhar tanto pela Europa (onde cresce a oposição ao corte de direitos sociais e à submissão das sociedades a ordens tecnocráticas), quanto por outras partes do mundo (uma eventual vitória grega será bastante incômoda ao ministro Joaquim Levy e à mídia que o apoia). Por isso, ambos os lados apostam muito alto e há risco tanto de crise bancária grave, na Grécia, quanto de um giro geopolítico profundo de Atenas, num momento em que as potências do “Ocidente” já se deparam com múltiplos focos de instabilidade.
Ao contrário do que sugere a mídia brasileira, a disputa é muito mais complexa do que o suposto risco de um “calote” da dívida grega. Nas últimas semanas, o governo de Atenas construiu uma estratégia ao mesmo tempo ousada e flexível. O primeiro-ministro Alexis Tsipras e o ministro das Finanças, Yanis Varoufakis, desmentiram quem apostou em sua rápida capitulação, talvez mirando o lastimoso exemplo de outros governantes europeus de “esquerda”. Têm sustentado que não haverá volta atrás. No entanto, não se limitaram a denunciar a devastação social das medidas de “austeridade”, nem a lembrar que a Alemanha, principal opositora a uma acordo honroso com a Grécia, tem uma dívida histórica com Atenas, originada à época da invasão nazista e nunca honrada.
Tsipras e Varoufaks construíram uma alternativa concreta. Não se negam a pagar a dívida – o que daria pretextos a seus adversários. Reivindicam condições para saldá-la sem a humilhação nacional. São amplamente apoiados por economistas como Paul Krugmann e Joseph Stiglitz, ganhadores do Nobel. Apresentaram, inclusive, uma proposta técnica sobre como fazê-lo. Estabelecem apenas uma condição: não querem perder o direito de respeitar a democracia. Foram eleitos para realizar mudanças. Começaram a fazê-lo, quando suspenderam as privatizações, restabeleceram o fornecimento de energia para as famílias que haviam perdido por estarem inadimplentes, anunciaram que reverterão a redução nominal de salários e a demissão de milhares de servidores sociais.
O conflito acirrou-se desde terça-feira. Uma reunião anterior dos ministros das Finanças da zona do Euro terminou abruptamente, quando Atenas recusou-se a ceder. Em seguida, o governo grego fez mais um gesto conciliador, ao anunciar, em carta, que aceitaria um acordo transitório, ainda que seu plano de reestruturação da dívida não fosse aceito no momento. A Alemanha puxou, de imediato, uma resposta áspera. O porta-voz do ministro das Finanças considerou que os termos do documento “não satisfazem os critérios estabelecidos pelo eurogrupo”.
Examinar os pontos em jogo hoje permite compreender as enormes dificuldades com que se deparam os governos que resistem à aristocracia financeira. Os governos europeus praticam abertamente chantagem. Sua principal arma para dobrar Atenas é o fantasma de uma crise bancária na Grécia. Em 11/2, o Conselho de Governadores do Banco Central Europeu (BCE) reuniu-se extraordinariamente e tornou mais duras as condições em que os bancos gregos podem se manter à tona. Em graves dificuldades há seis anos, as instituições operam normalmente graças a empréstimos que recebem de outros bancos do continente, e que foram mantidos durante todo o período em que Atenas manteve-se servil.
A mudança de atitude do BCE põe em risco o arranjo, numa situação já crítica. Contrariadas com a perspectiva de um governo de esquerda na Grécia, as elites do país promovem, desde dezembro (quanto foram convocadas eleições gerais) uma corrida aos bancos gregos. As retiradas somaram 5,4 bilhões de dólares em dezembro, o dobro em janeiro; e o ritmo cresceu em fevereiro. A perspectiva de uma quebradeira de bancos pode ser dramática para Atenas pelas repercussões sociais que traria – inclusive junto a uma classe média que votou pela primeira vez na esquerda… Não por acaso, a conservadora Economist, qualifica o BCE como “O Executor” [The Enforcer], em matéria sobre como o espaço que os governos europeus ainda têm para tentar colocar a Grécia de joelhos.
Mas também é nas crises que derrapam os que julgam possuir todo o poder. Se a reunião de hoje terminar em impasse; se 19 governos europeus não conseguirem vergar Atenas, surgirão duas grandes incógnitas políticas. Primeira: como reagirão os eleitores europeus? Cada vez mais atraídos, nos últimos meses, por propostas que se opõem aos projetos da aristocracia financeira, eles aceitarão calados que esta classe tente anular a democracia com ameaças e ultimatos? Irão se intimidar? Ou tenderão a voltar-se ainda mais para os partidos anti-stablishment?
Além disso, restará à Grécia a cartada geopolítica. Diante de um bloqueio financeiro europeu, Atenas poderia voltar-se a Leste. Não faltariam, à China, por exemplo, recursos para suprir, com folgas, a necessidade de moeda forte de que os gregos sofrerão, em caso de ruptura com a Europa (e, eventualmente, com os EUA). Pequim – e em especial Moscou, que age com mais desenvoltura – teriam enorme interesse em construir aliança estratégica com um país europeu. Talvez seja o motivo por que o governo grego, ciente de suas dificuldades, tem emitido acenos frequentes à Rússia, sugerindo que as sanções europeias a Moscou são injustas; que talvez seja preciso hora de revê-las…
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