"Estava numa boate com meu namorado e resolvi ir ao banheiro. Só havia fila para o banheiro feminino. Um cara, vendo aquilo ao sair, ofereceu uma 'vaga' no banheiro masculino afirmando que não tinha ninguém lá. A primeira da fila disse que o xixi dela não desce em lugares 'estranhos'. Como as meninas ficaram se entreolhando, eu resolvi ir. Ainda ouvi um: 'Menina, aqui é o banheiro masculino' (peraí, não tinha ninguém).
Meu namorado entrou bem na hora em que saí e perguntou o que eu estava fazendo. Ele ficou irritado comigo justificando sua revolta com o fato de que não quer que a namorada dele seja alvo de gracinhas. Eu disse apenas 'Não vejo nada de mais nisso'. Fiquei envergonhada de mim mesma porque foi uma situação boba e eu não soube argumentar. Será que é tão absurdo assim eu invadir um espaço que não me é destinado para atender a uma necessidade física?"
Minha resposta: J., seu namorado não tem nada que ficar dando bronca em você. Como você mesma já notou, banheiros são só... banheiros. Lugares onde fazemos nossas necessidades fisiológicas. Nunca foi um assunto que me interessou muito, se bem que lembro quando, no meu primeiro curso superior, uma turma fez um trabalho analisando o que estava escrito nas portas dos banheiros femininos da instituição. Aquilo foi muito bacana.
Tenho algumas historinhas desconexas sobre banheiros, se alguém quiser ouvir. No departamento da UFC onde fica o meu escri há apenas dois banheiros. E o departamento tem cerca de 45 professorxs, fora o pessoal da secretaria. É pouco banheiro pra muita gente, e dá fila.
Um dia recebi um email com a reclamação de que um professor estaria às vezes usando o banheiro feminino, quando o masculino estava ocupado. Para resolver esse "problema", cada professora deveria ter sua própria chave pro toalete feminino. Todas as professoras concordaram, menos eu (a gente precisa
mesmo de mais uma chave?). Alguém acabou falando com aquele professor, que nunca imaginara estar incomodando, e se comprometeu a não mais usar o banheiro feminino. Fim do problema.
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Nossos banheiros não são assim |
Pra ser franca, nunca engoli bem essa segregação em banheiros masculinos e femininos. Afinal, num banheiro público, a gente tem portinhas. Eu não faço o que tenho que fazer na frente de todo mundo, nem vejo ninguém fazendo xixi ou cocô na minha frente. Portanto, eu não dou a mínima pra quem está no banheiro ao meu lado.
Uma amiga me contou recentemente que "nós mulheres" íamos ao banheiro juntas não para fofocar, como reza a lenda urbana, mas para nos proteger. Eu achei incrível aquilo, porque ela falou como se fosse uma verdade absoluta, e pra mim não é. Eu não vou ao banheiro com ninguém, nem fofoco lá. Mas, principalmente -- e talvez eu seja uma privilegiada -- eu nunca, em toda minha vida, me senti ameaçada dentro de um banheiro. Claro, ouço falar de casos hediondos (como este, de uma jovem que, em 2000, foi estuprada e morta na faculdade particular de Fortaleza em que faria o vestibular), mas estão longe de ser a regra.
Quando eu já era professora da UFC, algumas alunas me relataram que, uma tarde, havia um tarado no banheiro feminino de um dos blocos. A segurança foi chamada, e o cara conseguiu fugir (foi uma semana difícil no campus; tivemos um assalto lá também; houve protestos por mais segurança).
Antes disso, uma professora me contou que um grupo de alunas foi reclamar com ela porque uma travesti estava usando o banheiro feminino, e elas se sentiam incomodadas. Não sei o que a professora fez, e suponho que esse episódio lamentável já tenha alguns anos, porque no nosso curso temos uma aluna tão popular e simpática, que ela foi diretora do DCE.
Ela é transexual (e imagino o quanto sua simples presença já tenha sido responsável por demolir vários preconceitos na universidade. Não consigo imaginar alguém falando pra ela que não pode usar o banheiro feminino, até porque a pessoa ouviria um monte -- Silvia, você é o máximo! Só que aí, procurando imagens para ilustrar o post, encontrei a notícia que Silvia já foi expulsa do banheiro feminino da biblioteca!).
Então vou voltar à pergunta da J: "Será que é tão absurdo assim eu invadir um espaço que não me é destinado para atender a uma necessidade física?" É esquisito usar esse termo,
invadir, quando estamos falando de um espaço público. E sobre o espaço não ser destinado a você, acho que todo cronista já escreveu sobre as placas de toaletes. Essas tão criativas que mostram qual o espaço pras damas e pros cavalheiros, pra quem veste azul e pra quem veste rosa, pra quem mija em pé e pra quem mija sentado.
Mas será que elas são criativas mesmo? O que há de tão original em reforçar estereótipos de gênero, em separar pessoas em sexos "opostos", em insistir num binarismo forçado em cima de diferenças construídas?
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Protesto no Shopping Center 3: pelos direitos das pessoas trans |
Hoje é Dia da Visibilidade Trans. Se você, J., entrar num banheiro masculino, recebe bronca do namorado machista. Mas pra pessoas trans usarem um banheiro público é muito mais complicado. Se uma travesti optar pelo toalete feminino, as mulheres chamarão os seguranças (aconteceu num shopping em SP, o que gerou um lindo protesto) ou farão um abaixo-assinado (aconteceu num shopping em Salvador, e a trans em questão era funcionária de uma loja no shopping, ou seja, colega da turma que fez o abaixo-assinado!). Se a travesti usar o toalete masculino, ela pode apanhar ou até ser morta.
E aí, o que fazer? Milhares de pessoas trans passam por isso diariamente. Muitas chegam a ter problemas urinários por terem que conter por horas seguidas a necessidade de ir ao banheiro. E não estou só falando da funcionária do shopping (que trabalha lá, passa horas lá, e não pode usar o banheiro sem que colegas protestem), mas também de crianças e adolescentes que não se identificam com o sexo designado a elas ao nascer, em escolas.
A criação de um terceiro banheiro não é uma solução. Afinal, é mais uma segregação. Assim como boa parte das mulheres (cis e trans) não querem vagões exclusivos em trens, ônibus e metrôs (a gente prefere que os homens aprendam a respeitar, obrigada), pessoas trans não pedem banheiro exclusivo. Pedem apenas que possam usar o banheiro que quiserem. Aliás, muitas querem acabar com o binarismo. Querem banheiros mistos.
E por que não? Se todxs nós vamos ao banheiro fazer a mesma coisa, por que precisamos ter banheiros separados? Ah, porque os homens fazem xixi em pé, em mictórios? Sério? Então homem não consegue mijar se não for num mictório? Você tem mictório em casa, ou um simples vaso sanitário?
O argumento de que mulheres (cis e trans) poderiam correr perigo se os banheiros fossem mistos é mais plausível. Mas em várias boates e bares existe a prática de banheiros mistos, e a gente raramente ouve falar de crime. E também, deixa eu te contar um segredo: mulheres
já correm perigo. Tipo, em todo lugar. Inclusive dentro de suas próprias casas (28% das mulheres mortas no Brasil são assassinadas dentro de casa. Mais de 70% dos estupros acontecem no ambiente familiar. Imagino que esses dados devem superar o perigo de qualquer banheiro público).
Porém, se abolir banheiros separados de uma vez soa radical demais pra você, vamos começar a aceitar numa boa que travestis e mulheres trans usem o banheiro feminino. Eu já escutei argumentos ridículos como "O cara vai se vestir de mulher pra poder entrar no banheiro feminino e estuprar mulheres". Não vai não. Isso é meio como pensar que brancos vão se declarar negros para poder se valer das cotas. Sabe, homens cis e brancos já têm privilégios. Eles não vão abrir mão desses privilégios pra tentar se passar por uma minoria historicamente oprimida. E o curioso é que, segundo a ativista Daniela Andrade, quem mais vocifera contra mulheres trans usarem banheiro feminino são os homens.
Se a enorme maioria cis (gente que nunca teve dúvida sobre sua identidade de gênero) não é capaz nem de integrar as pessoas trans no seu direito mais básico -- usar uma droga de um banheiro público (e
público quer dizer para todxs) -- vamos incluí-las em que situações? Ou a decisão dessa maioria tão democrática é que
não iremos incluí-las, e que está tudo ótimo em continuar sendo o país que mais mata trans no mundo?
Vamos assumir que marginalizamos pessoas trans. É preciso ter consciência dessa discriminação. Só assim podemos lutar conscientemente contra ela. E é uma luta que deve ser lutada por todxs.