Fila às 7 horas da manhã na escola da Rua das Mangueiras, cidade de Cabinda. Militares formados ao fundo.
1.
A primeira coisa que sentimos em Cabinda foi o desconforto de não podermos dar um passo sem ter uns capangas por perto, a esticarem-se para ver, ouvir e sobretudo intimidar quem tinha a coragem de vir conversar connosco, os observadores da UE. Fomos mudando de local, acabamos num quarto do hotel, mais para ter sossego que outra coisa – os nossos interlocutores (incluindo activistas da extinta Associação Cívica Mpalabanda) estavam mais que calejados... No dia da votação, nas instalações petrolíferas do Malongo demos de repente por um sujeito bem vestido, sentado no meio da nossa delegação na carrinha da Chevron em que fomos obrigados a deslocar-nos naquele perímetro para observar as mesas de voto locais. O meu colega britânico, Richard Howitt, insistiu saber quem era e ao que vinha. O homem balbuciou ser «do gabinete do Governador, estava a acompanhar-nos». Interrogado sobre o que fazia no gabinete, engasgou-se: era ....”burocrata”!
A segunda coisa que incomoda, e muito, em Cabinda, é que as oportunidades de informação são ainda mais cerceadas do que em Luanda - ali não chegam sequer as rádios e jornais privados, só os estatais controlados pelo MPLA. Os poucos habitantes de Cabinda que têm acesso internet e satélite safam-se, os outros ficam à mercê do diz-se, diz-se...
2.
Em audiência com o Governador de Cabinda e Primeiro Secretário local do MPLA, Sr. José Aníbal Rocha, depois de o ouvir elaborar sobre o progresso registado na província, damos-lhe conta da nossa preocupação com os relatos que recolheramos sobre a exorbitante campanha do MPLA, oferecendo carros, motos e elevadas quantias de dinheiro a torto e a direito, incluindo a todas as igrejas e seitas religiosas, mesmo as não reconhecidas. Resposta: “pois se as gentes e instituições precisavam e havia fundos!”. Candidamente perguntamos: “mas porque não agiu o Governo antes e não o MPLA durante a campanha eleitoral?" Resposta pronta e esclarecedora: “Mas se o MPLA é o Governo e o Governo é o MPLA!!!”
Aproveitamos o encontro com o Governador para o alertar como no PE estavamos a seguir com preocupação a situação do ex-jornalista da “Voice of America” Fernando Lelo, a aguardar na prisão em Cabinda uma sentença judicial sobre acusações manifestamente fabricadas. Pedimos que nos facilitasse uma visita ao preso, que tem direito a visitas. O Governador invocou falta de competência sobre as autoridades prisionais.
3.
No dia 5, às 6.30 da manhã entramos no recinto da escola da Rua das Mangueiras, onde funcionavam várias Assembleias de Voto. Já mais de cem pessoas faziam fila ao portão para votar. Assistimos aos preparativos das mesas de voto antes de abrirem: gente jovem envergando coletes de operadores eleitorais, alguma confusão relativamente a este ou aquele procedimento, mas tudo a resolver-se rapidamente, consensualmente.
Pouco depois das sete, as filas engrossavam já diante de cada Mesa. Foi então que chegaram os militares fardados, sem armas. Formaram no pátio – a gente nas filas baixava a voz, olhava de soslaio a formatura. Queriam votar primeiro. Votaram, e em seguida votaram polícias fardados, votaram depois paisanos que diziam ser “segurança” e ter mais que fazer. O pessoal da Mesa e representantes dos partidos só conseguiram votar depois.
Quando finalmente a fila de eleitores á porta foi deixada avançar, foi a altura de verificar quem estava dentro do recinto da votação. Nenhum observador nacional, um representante da UNITA, outro da FDP, outro do PRS e dois que diziam ser do MPLA mas não estavam credenciados. Ao longo do dia, em praticamente todas as assembleias de voto que visitamos em Cabinda, encontrou-se o mesmo padrão: um excesso de controladores do MPLA (a lei prescreve um por partido), sistematicamente não credenciados.
4.
No Caia, uma povoação com uma engraçada igrejinha a uns 15 minutos da cidade, observei uma cena que jamais esquecerei: entre os eleitores havia muita gente idosa e incapaz de escrever e o Presidente da Mesa 1, jovem compenetrado e atento, desvelava-se a explicar-lhes como votar usando a impressão digital «O minha avó, faça assim e assado....). Correctamente, sem qualquer tentação de os influenciar no sentido de voto, tanto quanto pude apreciar. A certa altura uma velhota atrapalhou-se e depois de ter votado no cubículo, dirigiu-se à urna dobrando o boletim do avesso, deixando a escolha visível. Uma das raparigas da mesa deu uma risada, enquanto lhe recomendava que dobrasse ao contrário. Sendo logo admoestada pelo Presidente “Não te rias! Respeitinho! que ela não tem culpa de não saber...”
5.
Dadas as apreensões trazidas de Luanda sobre possivel «maka» com a chamada “votação em urna especial”, fomos notando os procedimentos diversos, de assembleia para assembleia (o que atestava a confusão criada por sucessivas instruções da CNE em dias anteriores). Até que já longe da cidade, em Lico/Dinge, encontramos uma mesa de voto sem saber o que fazer aos votos já depositados em “urna especial”, face a instruções recebidas da CNE a meio da manhã desse dia 5 para misturarem daí em diante todos os votos na urna normal. Outras assembleias de voto depois visitadas tinham recebido instruções semelhantes: umas haviam rasgado os envelopes exteriores dos “votos especiais” e depositado todos os votos nas urnas normais, outras mantinham a “urna especial” com os votos já lá depositados....
A “maka” aí estava, só não sabíamos que dimensão assumiria.
6.
Na estrada em direcção a Massabi, numa Assembleia de Voto à saída de Lândana, alguém nos insta a procurar a aldeia de Simulincondo para investigar uma estranha concentração de milhares de pessoas trazidas na véspera pelo MPLA do Congo/Brazzaville para votar.
Calhava no trajecto em direcção à fronteira que tinhamos previsto, pelo que fomos perguntando aos passantes como chegar à povoação que não vinha no mapa. A certa altura foi preciso sair do asfalto – decidimos avançar (correndo o risco de causar um ataque de coração ao francês responsável pela nossa segurança, que tinha recomendações estritas que não largassemos a estrada, mas vinha no carro detrás).
Uns cinco quilómetros pela savana adentro começamos a avistar autocarros cheios de gente. Chegamos a uma aldeia. Onde uma grande festança parece estar em debandada: há tendas militares, toldos coloridos, uma ambulância, cadeiras e mesas, restos de comida e bebida e ainda muita gente relaxando. Dispersamo-nos e vamos metendo conversa: poucos falam português (explico ao meu colega britãnico que podem ser cabindas há muito refugiados no Congo/Brazaville). Em francês, várias mulheres e jovens dizem-nos que vieram na véspera de Pointe Noire, o Governo foi lá buscá-los, vieram votar pelo MPLA e divertir-se, a festa tinha sido esplêndida: muita comida, bebida, dança, convívio. Perguntamos onde votaram e explicam-nos que fora numas escolas, à beira da estrada. As conversas são subitamente interrompidas: uns capangas aparecem e interpelam rispidamente em dialecto quem nos fala. E em português corrigem, solícitos, para nosso beneficio: «não, eles são daqui, votaram aqui»!
Dividimo-nos, dou umas voltas, inspecciono a escola local (nenhum sinal de mesas de voto, só colchões no chão e pratos de plástico com restos de comida): um grupo de jovens esparramado diz-me, em francês, que dormiu ali e votou em Manengue. Os capangas aproximam-se, com ar pouco amigo e avisam-me que não posso tirar fotografias...(já cá cantavam as possíveis...).
7.
São quase seis horas, anoitece, já não dá tempo para voltar à cidade e assistir ali à contagem. Decidimos observar o encerramento das urnas e a contagem na Assembleia de Voto mais próxima, retornando à estrada. Um funcionário envergando uma tee-shirt da CNE à porta da escola de Chicamba deixa-nos entrar e confirma que o pessoal congregado em Simulincondo votou ali e na terra adiante, Manengue.
A contagem corre bem, numas mesas mais rápido que outras. Quanto aos “votos especiais”, conforme as interpretação dadas às instruções que nos dizem ter recebido nessa mesma manhã da CNE, são juntos aos “votos normais” e tudo é contado em conjunto: será impossível depois confirmar se quem votou por “voto especial” estava efectivamente inscrito e onde...
Terminada a contagem, pergunto se nao afixam os resultados à porta, como está prescrito na lei. Sem querer, crio alguma confusão entre os vários Presidentes das Mesas. Mas um logo tira as dúvidas aos outros: “nem pensar, não fomos instruidos para o fazer”. (Como é evidente, a falta de resultados afixados à porta da Assembleia de Voto, além de contra a lei, só facilitará a falta de controlo de quem votou, se eram da zona ou de fora....)
Noutras Assembleias de Voto, mais adiante já em Lândana, verificamos que os resultados estão afixados às portas. Seguimos o encaminhamento dos resultados da contagem de uma dessas Assembleias de Voto até ao Gabinete Municipal de Escrutíneo. Aí verificamos que várias Assembleias de Voto continuaram a manter “urnas de voto especial” separadas, para contagem centralizada.
8.
Acabamos cerca da meia-noite no Centro Provincial de Escrutíneo em Cabinda, onde estão a chegar as urnas e os resultados contados das Assembleias de Voto de toda a provincia. A azáfama é grande, mas há organização (que diferença da bagunçada a que assisti em fase semelhante nas eleições na RDCongo em 2006). No interior os funcionários eleitorais, responsáveis pela recepção dos faxes com as resultados eleitorais das diversas assembleias de voto, deixam-nos ver os já recebidos. Cerca de 30% das assembleias e a UNITA vai à frente em dois terços delas, embora noutras o MPLA tenha resultados esmagadores (será interessante analisar os resultados de Chicamba e Manengue e comparar com os das assembleias circundantes).