Por Paulo Moreira Leite, na coluna Vamos combinar:
Para quem abriu espaço na agenda para o julgamento do mensalão, assistir ao confronto entre a acusação e a defesa tem sido uma oportunidade única de exercício democrático.
O Brasil passou os últimos 7 anos ouvindo versões variadas do depoimento de Roberto Jefferson. Alvejado pelo único depoimento claro de malfeitorias no governo, resumido naquele vídeo-confissão de um protegido que nomeou para os Correios, Jefferson foi transformado numa espécie de herói conveniente para o jogo político da oposição, que pretendia atacar o governo Lula, José Dirceu em particular e o PT em geral. Pela repetição em milhares de depoimentos, entrevistas, editorais, reprises, idas, voltas, e assim por diante, Jefferson só não virou herói porque assim também não dá – mas esteve perto, vamos combinar.
A questão é que pela primeira vez a espessa camada geológica que protegia a verdade publicada sobre o mensalão tem sido submetida publicamente ao contraditório, ao conflito de opiniões, ao questionamento de provas parciais. O resultado é que o mensalão pode até ter sido o ”maior escândalo da história” mas cabe perguntar: de qual história? Por que? Da Justiça? Da política? Da imprensa? Do Ministério Público? O tempo vai dizer.
Quem assistiu às cinco horas de acusação de Roberto Gurgel, na semana passada, assistiu a uma demonstração de competência. Walter Maierovich disse, na CBN, que a denúncia de Gurgel é comparável a um cruzado de direita, aquele golpe de uma luta de boxe capaz de nocautear o adversário. Isso porque o procurador geral lançou a jurisprudência do domínio do fato, muito aceita em julgamentos que envolve o crime organizado e seu chefe – aquele que comanda uma rede de malfeitorias sem deixar rastros, nem enviar e-mails, sem falar ao telefone nem assinar recibo. Aceita em vários julgamentos a noção de domínio do fato, não pode, é claro, ser uma simples declaração de intenções, uma construção teórica sem apoio em fatos, à moda do Senado Paraguaio, que afastou o presidente Fernando Lugo porque “todo mundo sabia” que ele era culpado daquilo que cinco deputados de oposição diziam que tinham feito sem se dar ao trabalho de juntar provas nem testemunhos críveis.
A questão é evitar o Paraguai jurídico, evidentemente. E aí a segunda feira foi fundamental. Permitiu, pela primeira vez, que as acusações conhecidas dos brasileiros desde a célebre entrevista de Jefferson durante longo sete anos – há algo de bíblico nesse prazo? – fossem passadas pelo outro lado, pelo crivo da contestação, pela versão dos acusados. E aí é preciso reconhecer que nem tudo ficou de pé.
O advogado de José Dirceu mostrou que não há uma única testemunha de que o então ministro da Casa Civil estivesse articulando a compra de votos. Admitiu o óbvio, que Dirceu tinha uma imensa influência política em tudo o que ocorria no Planalto. Mas citou testemunhas e testemunhas que afirmavam o contrário do que disse Gurgel.
O advogado de Delúbio Soares mostrou uma realidade difícil de ser desmentida, a de que a verdade dos acordo políticos, os pactos entre partidos, é anterior ao acordo financeiro. É um argumento bom para se negar a noção de quadrilha, de bandidagem, que desde o início se coloca no debate. A defesa de Delúbio citou uma jornalista insuspeita de qualquer simpatia pelo governo Lula, para sustentar a tese de que todos os gastos e despesas se destinam, na origem, a cobrir despesas de campanha. Admitiu-se, portanto, crime de natureza eleitoral – e não corrupção.
O advogado de José Genoíno mostrou que é difícil sustentar que seu cliente tenha tido uma atuação além da articulação política. Mostrou que Genoíno assinou os pedidos de empréstimo do PT ao Banco Rural – e lembrou que este episódio, o único contra Genoíno, foi considerado inteiramente legal pela perícia, na época, destinando-se a cumprir uma necessidade real do partido, em situação de penúria após a vitória de 2002. A defesa também lembrou a condição pessoal de Genoíno, sujeito com vida de cidadão honrado, que até hoje reside no mesmo endereço na Previdência onde criou os filhos como professor e depois como deputado em não sei quantos mandatos. Fica difícil falar em corrupção sem sinais de benefício pessoal – motivação que é a causa inicial de malfeitorias de qualquer espécie
Numa intervenção que superou muitas previsões, a defesa de Marcos Valério conseguiu questionar, tecnicamente, alguns testemunhos e alegações contra seu cliente. Apoiado no depoimento de vários publicitários de grande reputação no mercado, demonstrou que uma alegação de irregularidade contra as agências de Marcos Valério, envolvendo uma remuneração conhecida como bonificação por volume simplesmente não tem sustentação técnica. A defesa ainda citou vários exemplos de depoimentos — usados pela acusação – que os mesmos autores desmentiram na Justiça.
Não é preciso usar da pressa paraguaia e concluir que nada se sustenta na denúncia de Roberto Gurgel. É necessários esperar novos questionamentos daqui por diante. Grandes leões do júri ainda não se pronunciaram. Acho impossível não surgir nenhuma novidade na fala de um Márcio Thomaz Bastos, de um José Carlos Dias. Teremos, ainda, os votos dos onze ministros e é claro que muitos deles têm o que dizer. O relator Joaquim Barbosa ainda não leu seu voto. Nem o revisor Ricardo Lewandovski.
O debate está apenas começando. Dificilmente será resolvido por nocaute.
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