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Bonecas perigosas
João Pereira Coutinho, Folha de SP
As expectativas não eram elevadas. Um filme sobre o controverso J. Edgar Hoover, lendário diretor do FBI, escrito por Dustin Lance Black, o roteirista de "Milk"?
Mau presságio. Mesmo com Clint Eastwood ao leme, a pena panfletária de Black acabaria por fazer estragos.
Não me enganei. "J. Edgar" é, do ponto de vista cinematográfico, pobre, derivativo, às vezes paródico, sobretudo quando Leonardo Di Caprio, envelhecido por quilos de maquiagem, faz lembrar um boneco de cera do Madame Tussauds.
Mas o problema do filme não está apenas na estética; está na preguiça ética com que Black (e Eastwood) retrata o personagem.
O cinema de Clint Eastwood sempre foi exemplar pela forma adulta como o diretor filma os seus heróis e anti-heróis. Se os fanáticos preferem dilemas maniqueístas, Eastwood opta pelas zonas cinzentas da ambiguidade moral.
"Os Imperdoáveis", filme elegíaco sobre o Velho Oeste, é o supremo exemplo da complexidade de Eastwood: o pistoleiro William Munny pode ser um assassino a soldo com um longo e sanguinário passado; mas é também o derradeiro agente da justiça terrena. Sobretudo quando as instituições dos homens se mostram corruptas e imperfeitas.
Essa complexidade abrandou com o incompreensível "Invictus": fascinado pela figura estimável de Nelson Mandela, Eastwood construiu um retrato hagiográfico e unidimensional de Mandela, tratado como uma espécie de madre Teresa da africanidade.
Que a personalidade de Mandela fosse mais contraditória do que o filme sugere (e a biografia "Conversas que Tive Comigo" mostrou-o há pouco), eis uma hipótese que não ocorreu ao deslumbrado Eastwood.
Como não ocorreu em "J. Edgar". O filme, dizem as resenhas, é uma "biopic" de John Edgar Hoover.
Acontece que não é. O filme é apenas uma versão histérica dos rumores que abundam sobre ele.
Para começar, rumores sobre a sua vida privada: um homossexual reprimido, dominado pela mãe, que gostava de usar vestidos na intimidade e manteve relação secreta com o seu assistente, Clyde Tolson, até ao fim da vida.
Clint Eastwood compra cada um desses rumores, nenhum deles confirmáveis por fatos históricos. E não hesita em filmar Leonardo Di Caprio a experimentar em frente ao espelho um vestido da mãe morta. Difícil chegar tão baixo.
Essa sequência do vestido não é apenas um clichê narrativo escusado; será a base de todos os clichês posteriores, como se os vícios de Hoover brotassem da mesma fonte: sua relutância em sair do armário.
Se Hoover não fosse uma boneca enrustida, sugere Eastwood, não haveria chantagens sobre vários presidentes americanos de forma a conservar o seu poder; não haveria o uso indevido de informações confidenciais (e ilegais) para neutralizar os seus adversários; não haveria megalomania paranoica nas suas meditações autobiográficas.
E, claro, o seu "anticomunismo primário" daria lugar a uma espécie de tolerância multiculturalista "avant la lettre". Se Hoover não fosse veado, ele e Al Capone até poderiam ter sido bons amigos.
Longe de mim sugerir que Hoover era um santo. Com a exceção de Nelson Mandela, ninguém é.
Sabemos hoje que Hoover alimentou hostilidade permanente contra os Kennedys motivada por feroz antipatia ideológica. E seu comportamento persecutório em relação a Martin Luther King, que o filme reduz a mero puritanismo sexual, ilustra só a incapacidade de Hoover em entender a importância de King na luta pelos direitos dos negros.
Mas também sabemos que o FBI se tornou um exemplo de investigação criminal único na época e no mundo; que Hoover foi implacável com as máfias organizadas que operavam durante a Grande Depressão; e que o seu "anticomunismo primário" talvez seja explicado pelo medo real de uma ideologia que produziu mais de 100 milhões de cadáveres no século 20.
Eastwood recusa a complexidade histórica que produziu Hoover. Prefere transformá-lo numa caricatura freudiana, obcecada com a sexualidade alheia e envergonhada com a homossexualidade própria.
Eis um caso irônico de como é possível fazer um filme-denúncia e ser mais papista que o Papa.
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