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Carta a Ana Gomes
Querida Ana:
Criticam-te por seres excessiva nos teus estados de alma, por dizeres o que pensas sem cuidares de introduzir entre o pensamento e a palavra uma medida consensual de correcção política (ou seja: entre o que não convém e o que convém dizer). E criticam-te porque não deverias questionar o funcionamento da Justiça, porque a Justiça tem direito natural a caixa alta e a política escreve-se com caixa baixa (a não ser que a quiséssemos transformar num mono de solenidade, retórica e ridículo). É por isso que a tua voz incomoda e que querem calar-te, em nome do equilíbrio, da normalidade, do bom comportamento, da paz institucional.
Venho pedir-te que não o faças. Que não te cales. Que sejas fiel a ti mesma: inconveniente, inconformada, rebelde. Mesmo que não estivesse de acordo contigo a 100 por cento, podes crer que era isso que sempre esperaria de ti. Este país apodrece de conveniência, cobardia, pequenez, hipocrisia. E são os "convenientes", os cobardes, os pequenos e os hipócritas que se aproveitam disso. Não podes aceitá-lo, não podemos aceitá-lo.
Querem que admitamos o inadmissível e que continuemos a acreditar que uma caricatura de justiça tem o direito a fazer de conta que é Justiça (com caixa alta). Querem que façamos de conta que a separação de poderes existe, embora só exista para um lado e não para o outro. Querem que engulamos em seco toda a arbitrariedade e toda a canalhice (como a que concede títulos de nobreza a cartas anónimas, em nome da isenção e da neutralidade!). Não, é demais.
Acusam-se (justamente, aliás) os jornais e as televisões por se aproveitarem da porcaria que lhes é fornecida, e invoca-se o argumento grave da violação do segredo de Justiça (com caixa alta, presumo). Mas quem é que fornece essa porcaria? E fornece-a porquê, se essa porcaria é logo considerada "irrelevante" e inócua? Porque é que essa porcaria visa sempre atingir e emporcalhar os mesmos alvos - e só eles? Quem - com poder e responsabilidade institucional - pode dar cobertura, sob os pretextos mais hipócritas, a tamanha monstruosidade?
Não, não podes calar-te, não podemos calar-nos. Não podemos aceitar que, em nome da separação de poderes, um poder escondido, clandestino, que não dá a cara, que não responde perante ninguém nem perante nada (nem o procurador-geral da República!), actue como se estivesse acima de qualquer escrutínio ou de qualquer responsabilidade. Não podemos aceitar que o Estado de direito, o regime democrático, a Justiça e o bom nome dos homens e das instituições sejam atirados para a lama como algo de natural e inelutável. Não podemos tolerar que o anonimato de quem escreve cartas (ou de quem administra a Justiça) passe a ser uma norma da nossa convivência colectiva.
Teu amigo,
Vicente Jorge Silva
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