COMO A TORTA É DISTRIBUÍDA NA TERRA DAS OPORTUNIDADES
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COMO A TORTA É DISTRIBUÍDA NA TERRA DAS OPORTUNIDADES


Este gráfico é de chocolate. Os verdadeiros não são tão gostosos.

Um programa de TV americano faz uma experiência. Primeiro, pede para que um grupo de psicólogos de uma universidade conceituada conduza um estudo sobre percepção da (des)igualdade sócio-econômica dos EUA. Eles organizam três pie charts (quadros, gráficos de pizza). No primeiro, 20% dos americanos mais ricos têm 20% da riqueza, e os 20% mais pobres também. Tudo bonitinho, cada quinto da população fica com um quinto da torta. Ou seja, este primeiro quadro expõe uma sociedade de total igualdade, uma utopia que não existe em nenhum lugar do mundo. No segundo quadro, os 20% mais ricos detêm 36% da riqueza, e os 20% mais pobres, 11% ― uma situação já bem desigual, mas nem tanto. No terceiro quadro, os 20% mais ricos abocanham inacreditáveis 84% da riqueza. Os pesquisadores então vão às ruas para perguntar aos americanos qual daqueles três cenários representa a distribuição de renda nos EUA.
O resultado é que a maior parte dos entrevistados escolhe o segundo gráfico, aquele de pouca desigualdade. O problema é que aquele quadro é o da distribuição de renda da Suécia. O dos EUA é o terceiro mesmo, em que os mais ricos têm 84% de toda a riqueza. Para os mais pobres sobra 0,3%. Em outras palavras, 40% da população americana não chega a ter 1% de toda a riqueza produzida naquele país. E a Terra das Oportunidades fica cada vez mais desigual. Nos últimos trinta anos, o 0,1% (não o 1%, mas o 0,1%) mais rico aumentou sua riqueza em 10%. Não é incomum ver casas de brinquedo, de bonecas, custando até US$ 230 mil para os super ricos, enquanto uma enorme quantidade dos americanos não têm nem casa de verdade. Um professor de Harvard afirma que os EUA ― a principal referência de como o capitalismo dá certo ― estão num grau de desigualdade similar ao da China e ao da metade dos países africanos.
Para ilustrar, o programa de TV entrevista pessoas que aguardam numa fila para entrar num show. Quase todas elas, de classe média, apontam incorretamente pro quadro do meio (o da Suécia) como o da distribuição made in USA. Quando o repórter se afasta um pouquinho para entrevistar imigrantes, de classe mais baixa, eles nem piscam ― escolhem o quadro certo, de extrema desigualdade. Mas quem acredita no sonho americano pensa que os mais ricos são 5% ou 10% da população. Estão enganados. São 0,1%. O investidor Warren Buffet diz que houve uma luta de classes nos EUA, e que sua classe ganhou. Alguma dúvida?
Ainda assim, os EUA são considerados um país democrático e livre, o que me parecem conceitos esquisitos num país com tamanha desigualdade. E se fosse no Brasil, um dos países mais desiguais do planeta? E se fizessem uma pesquisa dessas com a nossa classe média? A percepção da realidade vem torta se você só vive entre os seus. Você vive num condomínio fechado de luxo e tem a impressão que, se não todo mundo, muita gente leva o seu padrão de vida. Até hoje me lembro de quando, dez anos atrás, passei uma estatística pros meus alunos adolescentes ricos de que o acesso à internet não chegava a 10% da população no Brasil. Eles não acreditaram em mim. Pra eles, era todo mundo, porque todos seus amigos tinham internet.
A diferença da gente com os americanos é que, em geral, nós sabemos que somos um país desigual (e, ao mesmo tempo, achamos que nos States é diferente, que lá tudo funciona). E não movemos uma palha pra mudar a situação. Parece que gostamos dessa desigualdade, ou ao menos a toleramos.
O programa de TV americano ouve um economista da Universidade de Chicago (sempre eles), que tenta explicar a desigualdade americana: “É o incentivo para as pessoas que geram muito dinheiro”. Segundo ele, se você for bem sucedido, deve ser recompensado. E a recompensa vem em forma de impostos muito baixos. Impostos deveriam atenuar as diferenças sociais, certo? Faz sentido pra mim que os mais ricos paguem uma porcentagem muito maior de impostos que os mais pobres. Mas não é assim que funciona. Toda uma ideologia se encarrega de nos fazer crer que os que chegaram lá no topo da pirâmide mereceram, e que todo mundo pode chegar lá. Logo, quando o governo (qualquer governo, em qualquer lugar) fala em aumentar os impostos para quem ganha mais de 200 mil por ano, é uma gritaria geral. Fazemos abaixo assinados contra. Colocamos impostômetros nas avenidas. Mandamos correntes de emails indignados. Ouvimos atentos dezenas de especialistas na TV nos ensinando como aumento de impostos é o armagedon. Detalhe: a gente não ganha 200 mil por ano, a gente quase certamente não vai ganhar nunca na vida 200 mil num ano, mas a gente compra as dores de quem ganha 200 mil por ano, e diz que é injusto que se paguem mais impostos. Os poucos que ganham 200 mil por ano têm lobby em todos os órgãos do governo, mas nem precisam disso. Podem confiar na gente, sempre prontinha a defender seus interesses, como se fossem os nossos. Somos assim, altruístas ― meio tolinhos, mas temos um coração meigo, pelo menos para os mais ricos.
No estudo, quando a maior parte dos americanos vê o terceiro quadro, a percepção que têm é que a representação de extrema desigualdade deve ser de um país do terceiro mundo, como a Índia. Eles não fazem a menor ideia de como sua renda é distribuída. O que é bom, porque assim não têm contra o que se revoltar. Some-se a isso uma ideologia que jura que qualquer um pode entrar no clubinho dos super ricos se trabalhar duro (e, se isso falhar, sempre existe a chance de ganhar na loteria), e vivemos num mundo de zumbis, em que a galera acha a situação aceitável. Um outro mundo não é possível? Sério mesmo que isto é o melhor que temos? Falaram isso pra você e você acreditou?Do sempre genial Laerte.




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