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CRÍTICA: CONTOS PROIBIDOS DO MARQUÊS DE SADE / Pena de quem tem pena
De tempos em tempos, certos termos vêm perdendo o significado original. Por exemplo, a gente acha que "masoquismo" é ser crítica de cinema e ter de assistir a um bando de bobagens hollywoodianas. "Sadismo" é parecido; no dia-a-dia, assumimos que é quando alguém adora ver outro sofrer (no caso, Hollywood seria uma indústria extremamente sádica), sem haver ligação necessariamente com sexo. Só a palavra "sadomasô" ainda está ligada a sexo, se bem que também poderia estar relacionada à indústria do entretenimento.
Por que isso vem à tona? Bom, porque vi "Contos Proibidos do Marquês de Sade", que trata dos últimos meses de vida do homem que inspirou o termo "sadismo". Antes de mais nada, devo acrescentar que este não é um filme comum, feito para adolescentes e para gerar receitas referentes ao PIB de pequenos países. Tampouco é uma cinebiografia açucarada. Ou seja, não vá ao cinema esperando encontrar o velho sadomasô que sentimos em produções como, sei lá, "60 Segundos". Mas vá de qualquer jeito, que a história do marquês vale a pena.
Eu disse pena? É este mesmo o título em inglês, "Quills", que significa aquelas penas antigas usadas para escrever, antes do advento do computador, e também os espinhos de um porco-espinho, que a gente não associa a coisas muito prazerosas. Logo, o título original contém um duplo sentido e uma neutralidade que desaparecem na tradução para o português. Há ainda um outro ponto. "Quills" mostra que o filme é menos sobre o marquês e mais sobre escritores malditos em geral e o amor à arte em particular. O marquês de Sade, pra quem não sabe – e imagino que o pessoal que nunca ouviu falar de "dantesco", "maquiavélico" e "narcisista" esteja entre aqueles que não sabem –, foi o primeiro dos escritores modernos malditos. Publicou obras que alguns consideram pornográficas, como "Justine, ou Os Infortúnios da Virtude", e levou uma vida de inúmeros escândalos. Escapou da guilhotina da Revolução Francesa por um triz para pouco depois ser encarcerado por Napoleão em um manicômio. É este período de isolamento que o filme enfoca.
No início, o marquês até que é bem tratado no asilo de Charenton, dirigido por um jovem padre idealista. Suas obras são proibidas, mas ele consegue publicar o que escreve com a ajuda da camareira. Tudo muda quando um psicólogo é enviado para acabar com essa pouca vergonha. Primeiro, tiram-lhe as penas e a tinta. Ele continua redigindo, usando um ossinho de frango, vinho e lençóis. Quando isso também é confiscado, ele utiliza o próprio sangue. E finalmente, na total impossibilidade de escrever, ele dita suas palavras para os internos.
É ou não é um ato de amor? Mas o filme levanta outros questionamentos. O marquês foi um gênio ou, nas palavras do padre, "apenas um revoltado que sabe soletrar"? O escritor tem responsabilidade pela influência que exerce sobre os leitores? A exposição a maus pensamentos nos torna pessoas melhores? Eu me tornei uma pessoa mais digna por haver assistido a 1.426 explosões cinematográficas no ano passado?
O filme deve ser indicado a alguns Oscars. Geoffrey Rush (vencedor por "Shine"), está novamente formidável no papel do marquês. O elenco inteiro é bárbaro – Kate Winslet e Michael Caine, ótimos como de costume; Joaquin Phoenix dando um show como o padre e se recuperando da má impressão deixada por "Gladiador" (não foi culpa dele. Foi o roteiro que criou um vilão caricato). A direção de Philip Kaufman não foge muito do convencional. Por outro lado, quem mais pegaria um projeto ousado desses, se não o diretor de gemas como "Invasores de Corpos", "Os Eleitos" e "A Insustentável Leveza do Ser"? O cara é bom.
Então, saia da rotina sofrível dos arrasa-quarteirões e vá ver o filme. Sadomasô por sadomasô, eu fico com o do marquês, que pelo menos era assumidamente sádico, ao contrário de Hollywood, que nos faz sofrer aos poucos. Lembre-se que, para o marquês, estamos todos caminhando para a guilhotina. Em fila.
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