Eu deixei O Escafandro e a Borboleta escapar no cinema por não ter gostado do trailer, e admito que, se o filme não estreasse no Brasil hoje, também não o teria visto em dvd. É o tipo de programa que eu imaginava que causaria um novo tsunami com minhas lágrimas, eu que sou um farrapinho humano. Foi assim com os divinos Mar Adentro e Fale com Ela, e com o intrigante mas insatisfatório Johnny Vai à Guerra, ambos com temas parecidos. Mas estava enganada. Escafandro não quis meu dilúvio, porque não é um melodrama. É um filme “artístico”, com as vantagens e desvantagens que este termo implica.
Chato falar mal de Escafandro. Chato e perigoso, porque é uma dessas histórias que, pelo tema, não se pode ser contra. É sobre Jean-Dominique Bauby, editor da Elle francesa e que, aos 42 anos, sofreu um derrame e ficou três semanas em coma. Quando acordou, viu que teve uma doença rara chamada locked-in syndrome (sem idéia de como traduzir isso), que o impedia de mexer qualquer parte do seu corpo, exceto um dos seus olhos. E assim, piscando pra uma assistente que ditava o alfabeto pra ele, escreveu um livro que foi um sucesso. Ou seja, se eu desdenhar dessa trama de elevação do espírito humano, serei considerada uma insensível. E fora isso, o filme ganhou vários prêmios, foi indicado a quatro Oscars (não levou nenhum), foi elogiado por montes de críticos famosos. É óbvio que só posso estar errada.
Concordo que os primeiros trinta, quarenta minutos são muito bons. A câmera segue o ponto de vista do personagem principal. Quando ele chora, ela fica embaçada. Ela só vê o que ele vê. E é terrível quando lhe costuram um olho, já que a câmera tá lá dentro. Em geral, as imagens são belíssimas (tirando essa do olho!). Só que depois, quando passamos a ver além do seu ponto de vista, a peteca cai demais. A gente já conhece o bastante sobre o sujeito pra não gostar dele, e não há história comovente que nos envolva envolva. Até porque o carinha é arrogante e não trata muito bem as mulheres de sua vida. É um pouco de novidade uma vítima de uma doença tão cruel não se tornar uma pessoa melhor depois do coma. Bauby continua sendo machista até seu último suspiro. Mas gosto da cena em que uma especialista em fala diz pra ele que as modelos na revista estão cada vez mais magras e parecem-se com meninos. Ele não se defende nem em pensamento! (sim, a gente pode ouvir o que ele pensa).
É esquisito que os melhores momentos aconteçam quando estamos dentro da cabeça dele, e no seu relacionamento com médicos e fonoaudiólogas. Essas cenas são muito superiores às que ele passa com a família, nos flashbacks ou na atualidade. Mesmo que o filme não tenha mandado, eu chorei na cena em que Bauby dita pra fonoaudióloga que quer morrer, e ela se zanga. Mas foi só nessa parte, que é, de longe, a mais memorável de Escafandro. Talvez essas sequências funcionem mais porque podemos nos colocar no lugar dele, e pensar “O que eu faria se fosse comigo?”. Ainda assim, um tiquinho mais de suspense viria a calhar. Em Johnny Vai à Guerra (clássico de 71), o soldado sem braços, pernas, boca e olhos demora um tempo até descobrir quais partes de seu corpo estão faltando. É horrível, e ele vai descobrindo pouco a pouco (meio como o Ronald Reagan – ator – vendo que suas pernas estão ausentes e gritando “Where's the rest of me?!”, “Onde está o resto de mim?”, em Cada Coração um Pecado). Também demora pra que alguém pense numa forma de se comunicar com ele. Em Escafandro, é tudo mais fácil. Assim que Bauby desperta do coma, os médicos lhe explicam que ele está completamente paralisado, e já lhe ensinam como deve se expressar. Fico feliz que ele tenha uma vasta equipe trabalhando pra sua melhora, mas não pude parar de pensar que, se ele fosse pobre, seria diferente.
O filme tem vários méritos, claro. Ele nunca é monótono e tem bastante movimento, o que é uma façanha louvável numa história sobre um homem que só pode mexer uma das pálpebras. Só que fiquei imaginando como um personagem secundário – um homem que troca de lugar com Bauby num vôo que é sequestrado, e passa quatro anos como refém em Beirute – daria um filme mais interessante. E também, por que esconder? Não gosto do título. Eu mal sei o que significa escafandro, e preciso de uma fonoaudióloga só pra pronunciar a palavra (que me lembra salamantra). Entendo o nome: escafandro é porque Bauby sente-se preso numa armadura dentro do mar, e borboleta porque representa liberdade de movimentos e metamorfose, como se estivesse num casulo e fosse sair a qualquer momento (se bem que não consigo mais pensar em borboleta sem rir depois que o maridão, sem querer e muito sério, chamou The Butterfly Effect de The Borbolate Effect. Tá, sou uma insensível).
Talvez meu maior problema seja que não sou grande fã do diretor, pintor e escultor Julian Schnabel. Eu me recordo quase nada de Basquiat, e só lembro mais de Antes do Anoitecer porque o Javier Bardem é inesquecível em tudo que faz. Nenhum desses dois filmes eu veria de novo. Mas Escafandro pode ser inspirador pra mim por um único motivo: se o Bauby consegue escrever um livro com um olho só, por que eu não seria capaz de escrever a minha tese com duas mãos, uma boca, e aproximadamente metade de um cérebro? (a outra metade já está irremediavelmente comprometida).