Antes de continuar, um instantinho de reflexão. Quantos documentários você já viu na vida? Poucos, né? Eu também. É uma pena que esta outra forma de se fazer cinema chegue tão raramente até nós. Imagino que várias pessoas pensem que documentários são chatos. Essas devem ser as mesmas que acreditam em neutralidade. Bom, "Ônibus 174" não é chato nem neutro. Quando Padilha selecionou cenas reais pra montar seu filme, teve de tomar decisões sobre o que incluir e o que deixar de fora. Essas escolhas já demolem qualquer suposta neutralidade.
Poucas vezes presenciei um silêncio tão solene quanto na saída da sessão de "Ônibus". Não havia o que falar, qualquer tentativa seria fútil. A história de Sandro, o assaltante que fez reféns num ônibus carioca em junho de 2000 e acabou, pra variar, morto pela polícia, é um verdadeiro soco no estômago. Mais ainda que seu companheiro ficcional, "Cidade de Deus". O efeito de "Ônibus" equivale ao de "Cronicamente Inviável", que também é altamente perturbador. O documentário colhe vários depoimentos de policiais, de ex-secretário de segurança pública, de sociólogos, de jornalistas, de assistentes sociais, de gente que conheceu Sandro, das reféns. Todos os testemunhos são relevantes, tirando um, e esta é uma opinião estritamente pessoal, mas achei que as palavras da mãe adotiva do moço comprometem o ritmo. Há grandes compensações, claro. Um sociólogo diz que nada expõe mais a precariedade da polícia que um assalto com reféns, porque aí descobrimos que os policiais não têm sequer rádio (usam mímica) e que não fazem um curso há dois anos. A assistente social, ao explicar o passado de Sandro, conta que ele nasceu de pai desconhecido, e que a ilusão de que esse menino negro e favelado tenha avós faz parte da nossa mentalidade burguesa. Mais ou menos isso.
A vida do guri é uma tragédia só. Aos seis anos, viu sua mãe, grávida, ser assassinada. Criou-se nas ruas do Rio. Em 93, sobreviveu à chacina da Candelária. Sobreviveu também às Febens da vida, onde recebeu corretivos "sócio-educativos" (é piada ou não é?). E terminou sendo um elemento de periculosidade muito maior, pondo em risco dez reféns, num circo de horrores amplamente transmitido pela TV em rede nacional, ao vivo e em cores. No ônibus, Sandro grita o tempo todo: "Isso não é um filme de ação!", numa sombria metalinguagem. Noutro momento, ele fala a um comandante: "Lembra da Candelária? Eu tava lá!".
Se não lembramos da chacina, problema nosso. O diretor Padilha faz questão de nos levar a 93. Uma ex-menina de rua conta como era o cotidiano das crianças que dormiam em frente à igreja. Num depoimento comovente, ela narra que de vez em quando a molecada comprava um lanche no Bob's e o repartia entre eles – cada um dava uma colherada no sorvete. Nessas horas, segundo ela, "a gente se sentia filho de papai e mamãe". Sete guris foram mortos por policiais nesse massacre. E a maior parte da população achou que foi bem-feito.
O documentário trata bastante da invisibilidade dos meninos de rua, aqueles que a gente finge que não vê. No sinaleiro, três garotos fazem malabarismos, e os motoristas se recusam a olhar pra eles. Ahn, isso é só no Rio? Ademais, Padilha nos mostra um pouco das cadeias e delegacias cariocas, meros depósitos de presos. Um presidiário declara que seria melhor estar morto que viver nessas condições. A sociedade concorda. Ela não acredita em recuperação. Quer vingança, castigo, pena de morte. Uma das cenas mais surreais de "Ônibus" ocorre quando a plebe ensandecida parte pra linchar Sandro. Em pleno cerco policial! A posição do documentário é clara: a maior vítima dessa história toda foi o assaltante, como ecoa uma das reféns. E ouvir essas coisas dói.