Demóstenes e a dupla moral da mídia
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Demóstenes e a dupla moral da mídia


Por Maurício Caleiro, no blog Cinema & Outras Artes:

A pressa com que a mídia tenta tirar de cena o escândalo Demóstenes-Cachoeira, evidente nos últimos dias, deixa claro até para os que ainda insistem em nela crer que sua campanha implacável contra a corrupção e seu moralismo vigilante são de fancaria e atendem a interesses político-partidários específicos.
Tal afirmação certamente parecerá redundante para os que seguem a blogosfera e acompanham a profunda crise – material, de credibilidade e ética – em que a imprensa brasileira se meteu na última década, mas é preciso não se iludir: a internet, entre outros fatores, trouxe efetivos avanços à diversidade ideológica da comunicação no país, porém a mídia corporativa ainda preserva um considerável poder de repercussão junto a diversos estratos da população.

Crime ramificado

E é precisamente através do exercício de tal poder – decadente, mas efetivo – que a mídia, embora não tenha conseguido abafar e tenha adiado ao máximo a publicização do escândalo envolvendo Demóstenes Torres (eleito pelo DEM/GO), vem efetivamente ocultando do grande público que o país está diante de um dos maiores e mais bem documentados casos de corrupção de sua história.

Pois, além de envolver cifras impressionantes, as ramificações do poder amealhado por Cacheira e seus comparsas, apontam as provas, atingem o Senado, a Justiça, a atual administração estadual de Goiás, a PM goiana, os grupos de mídia e mais um sem-número de entes privados, alguns deles com enorme poder de mobilização de lobbies e de capital.

Comparada, no entanto. à cobertura dispensada ao chamado mensalão - que, a partir de uma denúncia de ninguém menos que o ex-collorido Roberto Jefferson, de muito “ouvi dizer” e de factoides que, hoje se sabe, partiram do próprio núcleo duro dos envolvidos na Operação Monte Carlo, parou o país por meses em 2005 – a atenção dispensada pela mídia às graves evidências colhidas na operação Monte Carlo é minúscula e na base do “vamos deixar pra lá” - vide o apelo cínico do catão-mór da imprensa Merval Pereira para que “não politizem as denúncias”.

Cadê o polvo?

Ora, quando as denúncias envolviam as forças políticas que desagradam à plutocracia midiática a qual Merval serve, a regra era uma exploração política máxima das acusações - mesmo que de rumores, factoides ou armações se tratasse; mesmo que dissesse respeito a uma tapioca de R$8,00, a uma diária de motel ou a uma carona num avião. Daí a exploração era não só política, mas eleitoreira e na base do derruba-ministro.

As mais de 40 capas de Veja contra um determinado partido político, sempre repercutidas pelo consórcio midiático de jornais, revistas e emissoras de rádio e TV - que, como reconhece uma das principais executivas do setor, atua como partido político –, aí estão para nos lembrar de como era voluntariosa e virulenta a indignação da mídia contra seus inimigos.

Mas e agora, que um dos políticos campeões de indignação moral pública sob os holofotes da mídia tem contra si contundentes provas que o envolvem até o pescoço em um esquema criminoso com penetração nacional, cadê as capas com um polvo maléfico? Os editoriais que se proliferam de jornal a jornal, cada vez mais empesteados da baba hidrófoba da autêntica indignação cívica? As passeatas cansadas querendo incendiar o congresso e dar um basta nessa democracia que só elege corruptos?

Ameaça à democracia

Tudo isso somado, é preciso se ter claro que, para muito além de sua significação para as relações entre corrupção e mundo político, as evidências contra o senador – e, até anteontem, bastião midiático da ética - Demóstenes Torres são reveladoras da ameaça à democracia que, no Brasil, as táticas empregadas pelo consórcio entre partidos conservadores e mídia corporativa representam.

Idealmente – e de acordo com o próprio papel social que historicamente reivindica para si -, uma das principais funções da imprensa seria informar o cidadão acerca dos meandros, práticas e significados das ações políticas e, assim, em um regime democrático, ajudá-lo a se posicionar e a decidir o destino de seu voto.

Tal cobertura naturalmente também incluiria, em alguma medida, a apuração e denúncia de corrupção contra figuras públicas ou partidos, o que acrescenta ao mencionado papel político-informacional da imprensa a formação de juízos de valor moral não apenas quanto a determinados políticos, mas em relação à própria atividade política como um todo.

À margem da lei

Agora, se, como evidenciam as provas relativas à Operação Monte Carlo, uma organização à margem da lei - da qual seria beneficiário direto um senador da República - tinha a capacidade não só de influir, mas até de pautar relevantes setores da mídia de forma efetiva, inclusive com a criação de factoides sem lastro na realidade, não só a própria função institucional da mídia está seriamente comprometida, mas o funcionamento pleno da ordem democrática ameaçado.

Portanto, as denúncias devem ser politizadas, sim - e cabe à blogosfera e ao que restou dos setores da mídia comprometidos com o avanço democrático avivá-las e publicizá-las -, sem a demagogia populista que caracteriza a atuação do consórcio do conservadorismo político-midiático, mas no intuito de fazer chegar ao público a verdade dos fatos e a necessidade de justiça para tão graves transgressões.

E o ônus pelo comportamento da direita e da mídia não pode mais recair somente no aparato político e midiático - é preciso que o público/eleitor que lhes dá audiência e voto seja também cobrado. Pois não é mais possível, nesse caso, a manutenção de uma moral dupla. Aqueles que compraram o discurso neoudenista que coloca uma idealizada pureza ética como o virtualmente único parâmetro axiológico da política têm de se decidir: ou sustentam tal posição e renunciam tanto à fidelidade aos partidos conservadores que têm violado a ética quanto à mídia que camufla tais violações, aligeira escrúpulos e é leniente com tal trangressão; ou, arcando com ônus da hipocrisia, admitem que o que os moveu nunca foi a ética, mas sim a identificação com as posturas elitistas, preconceituosas e socialmente discriminatórias do conservadorismo brasileiro e da plutocracia midiática que o apoia.

Coerência, por favor

Pois o caso Demóstenes/Monte Carlo demostra, com abundância de provas, que o grau de degradação da mídia corporativa, em suas relações ocultas com as forças conservadoras, é gravíssimo. A perda da tábua de salvação do moralismo, por onde se equilibrava a direita nativa, implica no reconhecimento de que os setores conservadores não têm projeto para o país.

Ao contrário do que as aparências sugerem, não se trata de algo que mereça comemoração: ter uma oposição que atue de forma programática e apresente propostas alternativas às das forças políticas no poder e contar com uma mídia que - ainda que sem ilusões de imparcialidade efetiva ou de descomprometimento com o capital - atue nas balizas determinadas pela deontologia do jornalismo seriam duas conquistas que fariam evoluir muito a democracia brasileira.

Porém, no momento, como o caso Demóstenes-Cachoeira e a cobertura que (quase não) recebe da mídia evidenciam, seria irreal acalentar a esperança de tal evolução.




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