DESCULPE NÃO SER VERÔNICA
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DESCULPE NÃO SER VERÔNICA


Ainda não escrevi uma linha sobre o caso Verônica. Nem ia falar nada, mas, como venho sendo bastante cobrada, vou me posicionar. Óbvio que muita gente vai me odiar pelo que falarei, mas isso nunca me impediu de dizer o que penso.
Antes, uma curta contextualização. No dia 14 de abril, semana passada, recebi DM de uma feminista perguntando se eu sabia "o que fizeram com a travesti Verônica". Respondi que não. Ela me enviou o link pra uma matéria horrível do Globo, que trazia a foto de um carcereiro que teve um pedaço da orelha arrancado. A matéria não divulgava o nome da agressora, mas dizia tratar-se de "um travesti" (o certo é uma travesti). O artigo também dizia, erroneamente, pelo jeito, que a travesti estava brigando com outra travesti quando uma vizinha idosa reclamou do barulho, e a travesti que mordeu o carcereiro a agrediu e foi levada à delegacia.
A feminista que me escreveu dizia que a notícia estava tendo pouca repercussão entre as feministas, e que uma página no FB em defesa de Verônica acabara de ser criada. As fotos que começavam a ser divulgadas mostravam Verônica com o rosto completamente desfigurado, com o cabelo raspado, nua, sem camisa, com os seios expostos. Fotos super violentas que deixavam claro que houve abuso policial.
Eu respondi que, por mais que as imagens de Verônica fossem horríveis, eu não poderia dar razão a quem arranca a orelha de alguém ou agride uma idosa. Preferi ficar quieta. Ainda expliquei que sou atacada direto por mil e uma coisas e que, se eu defendesse Verônica, os reaças viriam pra cima de mim com energia renovada (o que não é um bom argumento, admito: eles sempre mentem e atacam, independente do que eu e outras pessoas com ideologia oposta à deles diga). 
Também disse que, se Verônica fosse uma mulher cis, não trans, que tivesse cometido os mesmos atos (agressão à idosa, arrancar orelha a mordidas), eu também não iria me juntar ao "Somos Todas Verônica", que estava começando a aparecer nas redes.
Nos dias seguintes, acompanhei de longe as notícias que me chegavam (não é tão fácil, pra quem não tem Facebook). Ouvi Verônica dizer num áudio que não havia sido torturada por policiais e pedindo que sua história não fosse "usada para fins políticos". Mais tarde, li uma notícia em que ela desmentia a gravação, afirmando a promotores que fez o áudio porque a coordenadora para a Diversidade Sexual do Estado de SP lhe garantiu diminuição da pena, mas que ela foi, sim, espancada por policiais civis, militares, e principalmente, os do Grupo de Operações Especiais (sério: alguém que olha as fotos do rosto deformado de Verônica consegue negar o espancamento?).
Laura perdeu os dentes da frente
No último domingo o R7 publicou a versão de Laura, a vizinha de 73 anos que Verônica agrediu. Segundo Laura, que sofreu traumatismo craniano, perdeu todos os dentes da arcada superior, e está com o nariz e um braço quebrado, ela estava em seu apartamento quando abriu a porta para Verônica, que disse: "Você é o Satanás e eu vou te matar". 
Foi uma outra vizinha, Beatriz, também travesti, que intercedeu. "Bia salvou a minha vida", conta Laura. Uma outra vizinha, Livia, também tentou ajudar e, assim como Beatriz, foi parar no hospital.
Na matéria, vizinhos explicam que Verônica teve um surto por causa do uso de crack. 
O filho de Laura disse: "Estamos revoltados porque estão querendo transformar a Verônica em uma heroína. Ela teve a dignidade tirada por estar no chão com os seios à mostra. Mas e minha mãe? Eu quero justiça pelo que ele fez, independente se ele é travesti ou se fosse homem, ou uma mulher. Outra travesti salvou a vida da minha mãe e devo toda gratidão do mundo."
Verônica foi indiciada por tentativa de homicídio contra Laura, e também por dano qualificado, desacato, resistência e lesão corporal, pela agressão ao carcereiro. Espero que ela seja condenada. 
Porém, os policiais que espancaram Verônica também devem ser indiciados, julgados e condenados. Verônica cometeu vários crimes, não há dúvida nenhuma. E ela será julgada por eles. Mas vários crimes foram cometidos contra ela enquanto estava sob a tutela do Estado. O que o pessoal do "direitos humanos para humanos direitos" não entende é que não se pode torturar, espancar, violentar um(a) presidiárix. Independente do que elx tenha feito. 
Tampouco há a menor dúvida que nossa polícia é, além de violenta e assassina, transfóbica, misógina, racista e homofóbica. "Ah, mas Verônica também foi violenta". Claro, mas não se pode colocar no mesmo patamar uma pessoa (que será julgada e, espero, condenada por seus crimes) e uma instituição treinada para zelar pela proteção de todos os cidadãos. É meio difícil exigir coerência e preparo de um criminoso; já exigir isso da polícia é o mínimo. É uma questão de cidadania.  
E é evidente que o modo que a polícia tratou Verônica é um festival de transfobia. Exibi-la com os seios à mostra é algo que não ousariam fazer com uma mulher cis (ou melhor...). Com uma mulher trans, é o jeito de um sistema patriarcal vaticinar que não reconhece Verônica como mulher. 
Como já disse, quero que Verônica e os policiais que a espancaram sejam julgados e condenados. Verônica deveria cumprir sua pena numa penitenciária feminina, pois ela se identifica como mulher (e para impedir que aberrações como essas ocorram). Mas não pode por em risco a vida das outras presidiárias. Se ela é violenta, como já demonstrou ser, precisa ser tratada. De novo: cabe ao Estado zelar por todos e todas que estão sob sua tutela. 
Mas não me sinto confortável para adotar o #SomosTodasVeronica. Eu não sou Verônica, até porque falo do alto do meu privilégio cis, de classe média, que dificilmente seria torturada por fascistas fardados. Mas é possível cobrar respeito da polícia sem beatificar uma pessoa que agride outras.




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