Por Rodrigo Vianna, no blog Escrevinhador:As instituições, da mesma forma que as pessoas, cometem erros. E é salutar que – quando possível – venham a público e peçam desculpas pelas faltas cometidas. Mas o caso da Globo é estranho: o jornal da família Marinho acaba de publicar editorial reconhecendo que o apoio ao golpe de 64 “foi um erro”. O reconhecimento, diz o próprio jornal, vem após as manifestações de junho, em que as ruas do Brasil foram tomadas por gente que gritava palavras de ordem; e entre elas uma das mais ouvidas era: “a verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura”.
Ou seja, a Globo levou quase 50 anos (!) para reconhecer o erro. E o fez não a partir de uma avaliação honesta, mas sob o impacto de ter virado alvo do povo.
As organizações Globo não estiveram sozinhas no apoio à ditadura. Isso é fato. E o editorial se escora malandramente nesse fato para criar uma justificativa, na base do “eu fiz, mas todos fizemos”. Quase todos os jornais brasileiros, isso é fato também, clamaram pela derrubada do presidente constitucional João Goulart, em 1964. Eram todos (e seguem a ser) parte do PIG – Partido da Imprensa Golpista. Alguns jornais acreditavam, como diz o próprio editorial de “O Globo”, que os militares vinham para uma intervenção “cirúrgica”, e que logo a institucionalidade estaria a salvo, com eleições retomadas em 1966. Mas reparem: o “Estadão” em São Paulo, por exemplo, conservador até a medula, não levou 50 anos pra pedir desculpas. Quando percebeu que a ditadura viera pra ficar, a família Mesquita enfrentou os militares e pagou o preço por isso. O jornal sofreu censura prévia, jornalistas e direção foram ameaçados, e passaram a lutar contra o regime que haviam ajudado a instaurar.
“O Globo”, não. Aliás, o editorial é importante pelo que diz, mas é importante também pelo que esconde. O apoio à ditadura, no caso da Globo, não foi apenas uma parceria ideológica – num momento em que o mundo estava cindido pela Guerra Fria. Não. “O Globo” – e “a” Globo, sobretudo – colheu dividendos empresariais por ter mantido fidelidade canina aos militares. A família Mesquita do “Estadão” terminou a ditadura com menos poder do que tinha em 64. “O Globo” – e “a” Globo – terminou com muito mais força. E com mais dinheiro no bolso.
Os militares ofereceram à Globo a estrutura do Estado para a criação de uma rede efetivamente nacional (daí, por exemplo, o nome do “Jornal Nacional”). A história da Globo é inseparável da ditadura. É a história de um quase monopólio midiático construído às sombras de uma relação incestuosa com os milicos. E isso não há pedido de desculpas que resolva.
Roberto Marinho e a Globo enriqueceram sob a ditadura. E soa estranho que 50 anos depois do golpe de 64, surja este reconhecimento envergonhado do erro cometido. Aliás, pedido de desculpas propriamente não há ali. Não foi um pedido de desculpas… Mas um recado.
Na verdade, a Globo piscou. O reconhecimento envergonhado do “erro” em 64 (com “apenas” meio século de distância) é um sinal: as “Organizações Globo” estão preocupadas com certas nuvens que se acumulam no horizonte…
Há uma conjunção de fatores. Vamos a eles:
1 – o avanço das grandes corporações internacionais de mídia, que chegam ao Brasil com a força da internet, especialmente o Google (para entender o que se passa nesse mercado, leia esse texto publicado pela Revista Forum);
2 – o fato de a Globo ter-se transformado em alvo de manifestações populares em todo o Brasil (olaser no rosto do apresentador em São Paulo é um símbolo de que o povo ameaça, simbolicamente, “invadir” os estúdios globais; e o estrume lançado contra a porta da Globo em São Paulo é também metáfora dos novos tempos malcheirosos para os Marinho);
3 – as denúncias de Miguel do Rosário, no blog “O Cafezinho”, sobre o processo contra a Globo por milionária sonegação fiscal (o processo foi roubado do escritório da Receita no Rio, já sabemos; mas sob ordem de quem? e o que havia de tão comprometedor ali?);
4 – as denúncias contra Ricardo Teixeira (elas ameaçam o produto mais rentável no jogo de poder das comunicações – o futebol).
Tudo isso fez com que emissários da família Marinho tenham procurado gente próxima ao lulismo nos últimos meses, para sugerir que as “Organizações Globo” aceitam conversar sobre algum tipo de “compromisso”. A Globo, nos bastidores, aceita sim regulação da mídia. Mas a regulação que a Globo quer é para segurar o Google. Não é a regulação por mais democracia. Não. A Globo, nos bastidores, utiliza um discurso malandramente “nacionalista” para pedir garantias contra os gigantes da internet…
A Globo está com medo. O cenário empresarial ainda é amplamente favorável à família Marinho: BV, poder político no Congresso e a covardia de certos setores governistas garantem conforto à maior emissora do país. Mas o sinal amarelo acendeu. O cenário pode mudar rápido. E a Globo é grande demais, “pesada” demais…
O reconhecimento do “erro” pelo apoio ao golpe de 64 pode ser lido como um sinal de boa vontade que a Globo envia ao lulismo: “podemos ser nacionalistas e democráticos, vamos conversar!”
Claro que a Globo é uma empresa grande, e por isso há espaço para idas e vindas e para posições diversas na estrutura interna de poder. Aliás, o diretor geral da Globo Carlos Schroder acaba de fazer uma reestruturação interna de cargos, que ocorre exatamente nesse momento em que a Globo busca dar respostas ao conjunto de fatores que geram incômodos e preocupações.
Nesse balanço de forças interno, Ali Kamel, Merval e os ideólogos do Jornal da Globo – entre outros – são a face dura: representam a facção que defende o combate aberto. Mas há os pragmáticos, que sabem da necessidade de alguma aproximação com o governo e o lulismo: sabem que águas turbulentas podem dificultar a navegação desse imenso transatlântico. As turbulências vêm da concorrência internacional, mas vêm também das ruas.
O “revisionismo” histórico de reconhecer o erro cometido em 64 segue essa lógica. É o envio de um sinal ao campo adversário… Se a situação piorar, será que a Globo reconhecerá também o erro histórico que foi ter nomeado um diretor de Jornalismo como Ali Kamel, que nega a existência de racismo no Brasil?
Será que a Globo, daqui a 20 ou 30 anos, vai-se desculpar pela cobertura criminosa da campanha das Diretas-já em 1984? Ou pela perseguição insidiosa a Brizola? Ou ainda pela edição do debate Lula/Collor em 89? E o que dizer da cobertura das eleições em 2006 (vi de perto, eu estava lá) e em 2010 (com a exploração da bolinha de papel no JN, para ajudar Serra na reta final)?
Aguardemos novos sinais. Esse é um jogo bruto que se joga nos bastidores. Longe das telas e das tribunas.
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