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Epidemia de crack e abandono - OSMAR TERRA
O GLOBO - 11/03
Crianças e adolescentes também são cidadãos desde a concepção, e é imperativo que as políticas públicas protejam seu direito à convivência familiar e comunitária
Dados do Mapa da Violência 2014 e de pesquisa do Conselho Nacional do Ministério Público, apresentados em primeira mão pelo GLOBO de 24 de fevereiro, identificam que as drogas são a maior causa do abandono de crianças e adolescentes no País. A pesquisa mostra que 80% dos 46 mil casos de encaminhamento de crianças e adolescentes para instituições de acolhimento estão relacionados ao uso de drogas pelos pais.
O texto destaca o crack como fonte de discriminação dessas crianças posteriormente, quando podem vir a ser adotadas, pois se teme que sejam problemáticas em decorrência do consumo da pedra pelos pais. Em minha proposição original para o projeto de lei de drogas, indiquei a importância de diferenciar as medidas legais quando se trata do consumo de crack do de outras drogas. Infelizmente, isso se modificou no decorrer da tramitação do projeto de lei. Mas vemos que a pesquisa registra que o abandono de crianças triplicou nos últimos anos e está relacionado à epidemia do crack, que pode nos levar a uma epidemia de abandono.
Trata-se da constatação de calamidade pública quando se tem noção da repercussão do abandono. Se compreendermos a importância dos vínculos familiares para a saúde mental e social, quanto mais nas fases iniciais do desenvolvimento humano, podemos ter noção do risco em que se encontram crianças e adolescentes privadas das condições para um desenvolvimento saudável.
Quisera que todo o debate de contestação da internação involuntária para tratamento da dependência química, que se organiza no novo projeto de lei de drogas e se limita a no máximo 90 dias, se voltasse para a problemática da ?internação involuntária? a que são submetidas as 46 mil crianças e adolescentes que começam a ganhar voz a partir de pesquisas como essa. Por lei, as crianças deveriam ficar institucionalizadas por no máximo dois anos ? o que já é um tempo incrível para o que significa cada dia no desenvolvimento infantil. Na prática, esse prazo ultrapassa os dois anos. Não raro, há crianças e adolescentes que permanecem institucionalizados até os 18 anos e depois... O ciclo de abandono se reproduz na sociedade.
Se, por um lado, a preocupação com os índices de aumento da criminalidade que se manifesta por meio da violência física e material é crescente, também temos que olhar com mais atenção para a violência psicológica e silenciosa que está se revelando nas pesquisas. Nossas crianças e adolescentes também são cidadãos desde a concepção, e é imperativo que as políticas públicas protejam seu direito à convivência familiar e comunitária e o direito a um desenvolvimento humano pleno, que não requeira depois a defesa do direito a usar drogas como um remédio para os sintomas da exclusão social que pode ser prevenida.
Trabalho com essa consciência, desde quando era secretário de Saúde no Rio Grande do Sul, criando políticas públicas para a promoção do desenvolvimento humano e a prevenção da violência, especialmente por meio do programa Primeira Infância Melhor, reconhecido internacionalmente. No Legislativo, protagonizei a criação da Frente Parlamentar da Primeira Infância, que já possibilitou a 23 parlamentares se especializarem no tema, em curso envolvendo a Universidade de Harvard, a USP e a PUC-RS. Nessa trajetória, em 18 de dezembro de 2013, apresentamos um projeto de lei que pode modificar o cenário preocupante de abandono da infância e pode ir à raiz dos problemas sociais do Brasil (PL 6.998/2013).
Estamos prestes a instalar a Comissão Especial da Primeira Infância, para trabalhar o marco legal da primeira infância e promover o cuidado integral desde o nascimento. Isso envolve também apoiar as famílias e os profissionais que se dedicam ao cuidado das pessoas.
Se as drogas são a principal causa do abandono, o abandono pode ser a principal causa de todos os problemas que ameaçam nossa sociedade. Então vamos trabalhar para acolher e cuidar de cada cidadão, no período mais recomendado em termos de saúde e cidadania, inclusive em termos de investimento econômico. Podemos mudar o cenário de abandono, também aquele feito pelo Estado.
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