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GUEST POST: NÃO EXISTE CURA PARA O QUE NÃO É DOENÇA
Semana passada publiquei um ótimo guest post do Guilherme, que é psicólogo e gay, mas alguns leitorxs sentiram falta de um texto menos pessoal e mais técnico sobre o projeto de lei apelidado de "cura gay".
Pedi então à linda e maravilhosa Amana Mattos, professora de Psicologia da UERJ, pós-doutora em Psicologia, e autora do livro Liberdade, Um Problema do Nosso Tempo, para escrever sobre o tema.
Amana já contribuiu com dois guest posts fenomenais aqui pro blog (leia e/ou releia). Mesmo com a agenda totalmente ocupada de uma pesquisadora, ela topou. Deleite-se!
Na semana passada, num momento em que todxs nós estávamos mobilizadxs pelas passeatas, manifestações e discussões que tomaram o país, recebemos a notícia revoltante de que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, presidida pelo Pastor Marcos Feliciano, aprovou, numa sessão obscura, o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) nº 234/2011, de autoria do deputado João Campos (PSDB-GO).
O projeto, que vem sendo apelidado de “cura gay”, foi aprovado por “votação simbólica”, isto é, sem contar com o quorum mínimo de parlamentares necessário para esse tipo de votação. Ele ainda vai percorrer outras instâncias até chegar a ser votado no plenário. Entretanto, o assunto já repercute no país, e tem sido alvo de diversas críticas e manifestações, como a que aconteceu em São Paulo na última sexta-feira, que teve como pauta única essa questão e reuniu mais de 4 mil pessoas, assim como várias outras que ocorreram em todo o país na quarta.
Para nós, psicólogxs, e para todos aquelxs que conhecem o Código de Ética que rege a atuação dxs profissionais registrado nos Conselhos Regionais de Psicologia (para atuar profissionalmente é preciso ter o registro), esse projeto é, além de uma afronta à autonomia do Conselho Federal de Psicologia (CFP), uma piada de mau gosto, porque torna legítimos “tratamentos” psicoterápicos para uma condição que não é reconhecida como doença pela Psicologia.
Um projeto absurdo que vem mobilizando a sociedade, mas também estimulando setores conservadores e extremistas religiosos a vociferarem todo o seu preconceito contra homossexuais. Se considerarmos que no Brasil a violência contra homossexuais atinge níveis alarmantes e que a homofobia ainda não é considerada crime (ao contrário do racismo e da violência contra a mulher), vemos que um encaminhamento desse tipo pode provocar muito mais estragos do que poderíamos supor num primeiro momento.
Mas sobre o que, de fato, trata o projeto? (quem quiser, pode ler o documento na íntegra aqui). Resumidamente, ele propõe que sejam suspensos dois artigos de uma resolução do CFP, em vigor desde 1999: o parágrafo único do artigo 3º, que estabelece que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades."
E o artigo 4º, que estabelece que “os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.”
Acho importante trazer aqui o texto dos dois artigos em questão porque são muito claros: o CFP, respeitando a decisão da Organização Mundial de Saúde de 1990, não considera homossexualidade uma doença. Se não é doença, não pode ser tratada. E qualquer psicólogo que ofereça tratamento psicoterápico que prometa “reversão” da orientação sexual de alguém pode vir a ter seu registro cassado. O CFP divulgou uma nota precisa e esclarecedora sobre a questão, e recomendo fortemente a leitura.
Mas... que ideia é essa de que é possível “tratar” homossexuais e oferecer uma “cura” a uma suposta “doença”? Até a década de 1970, os manuais de psiquiatria norte-americanos classificavam a homossexualidade como “distúrbio de personalidade sociopática”. Com a luta dos movimentos LGBT, essa classificação caiu, pois ficou evidente de que se tratava de um julgamento moral, não “científico”. O grande argumento por parte dos movimentos para a despatologização da homossexualidade, desde então, tem sido o de que o que gera sofrimento para os homossexuais não é a sua condição, ou sua orientação sexual em si, mas todas as experiências de preconceito e discriminação. Em outras palavras: se a sociedade aceita os homossexuais, não faz sentido afirmar que estes sejam “doentes”.
Além disso, surpresa!, o sofrimento psíquico não é exclusividade de gays, lésbicas, bissexuais e pessoas trans*. Heterossexuais sofrem -- e sofrem muito -- com questões relacionadas a sua sexualidade. E nós, psicólogxs, como profissionais formadxs para lidar com questões subjetivas -- seja na clínica, na escola, nos hospitais, nas organizações -- devemos acolher todo e qualquer sujeito que nos procure precisando de ajuda. Como classe profissional, temos que oferecer o que estiver ao alcance da psicologia enquanto campo diverso para ajudar e apoiar as pessoas a lidarem com suas dificuldades, crises, angústias.
Entretanto, aquilo que não podemos fazer é oferecer um tratamento que prometa “reverter” a orientação sexual de alguém. Primeiro, porque isto é antiético, e segundo, porque a validade desse tipo de “tratamento reversivo”, ou “terapia reparadora”, é altamente questionada entre pesquisadores da área.
Em 2012, o renomado psiquiatra Robert Spitzer veio a público dizer que os resultados de uma pesquisa realizada por ele anos atrás sobre a eficiência dessas “terapias reparadoras” eram falsos -- ou, academicamente falando, “continham erros metodológicos graves que invalidavam a pesquisa”. O psiquiatra pediu “desculpas à comunidade gay” por ter divulgado sua pesquisa, uma vez que os resultados não eram concludentes.
Cabe a pergunta: por que esse furor em regular e “corrigir” a sexualidade alheia? Com tantas coisas importantes acontecendo no país, por que alguns políticos insistem em discutir o sexo e as práticas das pessoas? Infelizmente, não apenas no Brasil mas em todo o mundo, o discurso conservador e de direita, no que diz respeito às questões sexuais e reprodutivas, vem de braços dados com a religião -- mesmo nos países em que o estado é (ou deveria ser) laico. É o que temos visto em relação ao Estatuto do Nascituro, ao tratamento oferecido em “comunidades religiosas" (com recursos públicos!) para usuários de drogas internados compulsoriamente e, claro, para o projeto apelidado de “cura gay”.
Nos EUA, “tratamentos" que se valem de preceitos religiosos para a reversão da homossexualidade são bastante difundidos, mas vêm perdendo força a cada dia. Recentemente, causou comoção a notícia de que a maior comunidade do mundo dedicada à “cura gay” fechou suas portas, e seu líder, Alan Chambers, assumiu ser homossexual. Chambers denunciou explicitamente a “terapia reparadora” praticada nessas comunidades, reconhecendo que, de fato, não conheceu ninguém que tivesse efetivamente mudado sua orientação sexual após passar pelo “tratamento”.
A direita religiosa norte-americana, por sua vez, vem causando danos não apenas aos americanos, mas também a povos de outros países, reproduzindo o que há de pior e mais deletério em termos de colonialismo e opressão. Para terem uma ideia do que vem sendo promovido pelos missionários americanos em países africanos, sugiro dar uma olhada nesse vídeo indigesto.
Então, recapitulando: o projeto que o senhor Marco Feliciano está se esforçando para aprovar se resume a propor a suspensão de artigos de uma resolução do CFP que proíbem que psicólogxs ofereçam tratamento para algo que não é uma doença. Um recente editorial da Folha de S.Paulo resumiu muito bem o absurdo desta proposta: “Um médico não pode propagandear terapias para doenças incuráveis. Um advogado não pode prometer vitória líquida e certa. Cabe aos conselhos profissionais, e não ao Legislativo, determinar o que é charlatanice em cada campo.”
Quero acreditar, mais do que nunca, que esse projeto não passará. Que neste momento de grandes mobilizações a sociedade brasileira dirá um sonoro NÃO aos interesses escusos e obscurantistas de políticos religiosos que querem empurrar goela abaixo seus valores para todxs os cidadãos diversxs desse país.
Vamos dizer NÃO nas ruas, nas redes sociais, em cada lugar em que estivermos. A psicologia vem lutando muito para despatologizar a sexualidade, e um projeto como este ameaça seriamente o modo como cada um de nós vive o seu desejo. Se agora a questão em xeque é a homossexualidade, o que pode vir amanhã?
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