Geral
Horizontes para um espaço conservador
Por André Lara Resende | Para o Valor, de São Paulo
A cientista política americana Frances Hagopian, em recente visita ao Brasil, disse que o PSDB deveria assumir sua posição de centro-direita. Depois de três derrotas consecutivas nas eleições presidenciais, parece haver certa perplexidade no partido. Como foi possível que, depois de estabilizar a inflação, de encerar um ciclo de duas décadas de crises e de dar início a uma nova fase de prosperidade, o PSDB tenha sido recorrentemente derrotado nas eleições presidenciais? Fala-se, até mesmo, em refundação do partido. Refundação talvez, mas declarar-se de centro-direita, jamais. Por que a direita, ainda que amenizada pelo aposto centrista, é tão execrável? Por que qualquer movimento com pretensão de ter o apoio da população precisa se definir como de esquerda, ou no mínimo de centro-esquerda?
Antes de tudo, é preciso saber se esquerda e direita ainda fazem sentido no mundo de hoje. Durante todo o século XX, a esquerda esteve associada aos movimentos socialistas, na sua grande maioria de inspiração marxista. O fim do comunismo e o fracasso do planejamento centralizado deixaram a esquerda órfã de projeto. Ser de esquerda passou a significar apenas ser a favor da redução das desigualdades e da justiça social. Mas como ninguém de bom senso pode ser contra, hoje somos todos de esquerda. Não faz sentido tentar definir esquerda como uma questão de grau: somos de esquerda, porque somos mais a favor da justiça social do que eles. É preciso então definir-se por oposição ao que seria a direita. Daí à demonização da direita é um pulo.
Direita e esquerda parecem-me termos menos adequados aos dias de hoje do que conservador e progressista. Não que a escolha dos termos ajude a posição conservadora. Ao contrário, se o conservador define-se por oposição ao progressista, a defesa do conservadorismo é tarefa inglória. A crença no progresso é o dogma supremo da modernidade. Parece-me, entretanto, que o espaço conservador existe e que sua exclusão da vida pública empobrece o debate, dificulta a compreensão das ideias e faz com que a política perca o sentido da realidade.
O conservadorismo opõe-se à crença racionalista moderna de que valores políticos defensáveis precisam estar necessariamente baseados num sistema de propostas articuladas, cuja aplicação é universal. Assim definido, o conservadorismo opõe-se a toda proposta idealista totalizante. Não apenas às de esquerda, como o socialismo marxista, mas também às de direita, como o fascismo e o nazismo. O elemento central da posição conservadora é o ceticismo. Ceticismo em relação à possibilidade de que qualquer sistema de ideias tenha aplicação universal e seja capaz de resolver os dilemas da vida em sociedade.
O conservadorismo, assim definido, não coincide com a direita. A esquerda, embora tenha sido obrigada a aceitar a economia de mercado, por falta de alternativa, insiste em associá-la a todos os tipos de mazelas, se não estiver submetida a uma política de Estado. O planejamento central foi descartado, mas o dirigismo estatal não. Sai o velho modelo soviético e entra o novo modelo chinês. O livre mercado sempre esteve e continua associado à direita. A defesa da economia de mercado como forma superior de organizar a economia, especialmente a defesa radical do livre mercado e do estado mínimo, é um dos pilares da direita moderna. Para a visão conservadora, entretanto, é apenas mais uma ilusão. Todo sistema articulado de ideias com pretensão de universalidade deve ser tratado com ceticismo. O livre mercado não é exceção.
O conservadorismo ilustrado não é avesso ao progresso e à mudança. Ao contrário, por ser realista e tolerante, reconhece a necessidade de adaptação aos tempos e às circunstâncias. Só não avaliza sonhos revolucionários. Não coincide com a direita, porque a direita, assim como a esquerda, é ideológica, propositiva e quase sempre arrogante. O ceticismo do conservador, em contrapartida, o faz humilde e tolerante. Humilde, por saber compreender os limites das possibilidades de resolver os conflitos e os dilemas da vida em comum. Tolerante, por reconhecer que é preciso aceitar a diferença e a contradição. Porque sabe que é preciso ser paciente e dar tempo ao tempo, pois nem tudo tem sempre solução. Nada mais longe do espírito da modernidade.
Compreende-se que o espaço conservador tenha sido eliminado da vida pública, mas não me parece que o espírito conservador tenha desaparecido da vida privada. Ao contrário, sem lugar na esfera pública, o conservadorismo refugiou-se na psicologia privada, lá se fortaleceu em silêncio e hoje alimenta o profundo desprezo pela política e pela vida pública, que permeia o mundo contemporâneo. Parecer otimista e confiante é um dogma que poucos, especialmente os mais jovens que precisam estar inseridos, ousam contestar de público. O hiato entre aquilo em que se pretende acreditar e aquilo em que se acredita, entre o que se proclama e o que se é, sempre foi grande.
Ao admitir que a imperfeição não vai desaparecer, que dor e dificuldade não são passíveis de cura definitiva, o conservadorismo rejeita toda proposta utópica. Acontece que a crença no progresso, como indissociável da história da humanidade, é também um projeto utópico. Um projeto utópico que substituiu a religião como alicerce da civilização ocidental a partir do Iluminismo. O conservadorismo reconhece, evidentemente, os ganhos associados ao avanço da ciência, mas não se ilude em relação à sua possibilidade de eliminar o sofrimento e o mistério da condição humana. Seu objetivo é mais modesto: minimizar o sofrimento e melhorar a qualidade da vida, por meio da adaptação dos valores, das práticas e das instituições às condições objetivas das circunstâncias. A tarefa do governo é sustentar as instituições e a comunidade, de forma que - se não garantem necessariamente a felicidade - ao menos ajudem a suportar as aflições naturais da vida de uma forma digna e que possa fazer sentido.
O ceticismo conservador, ou o conservadorismo ilustrado, tem longa tradição intelectual, principalmente na Inglaterra, desde Hobbes e Hume, até John Gray, seu maior expoente nos dias de hoje. Compreende-se assim que, apesar de ojeriza da política contemporânea ao conservadorismo, a Inglaterra ainda tenha um partido que se denomina Conservador e que hoje é governo.
Volto ao PSDB. Não sei se o partido é de fato de centro-direita. Ainda que fosse, o rótulo "de direita" ficou excessivamente vinculado à indiferença ao sofrimento alheio, ao egoísmo e à falta de compaixão, para estar associado a qualquer iniciativa pública. Mas o país só teria a ganhar se, independentemente de rótulos, um partido maduro, seguro de suas contribuições, não compactuasse com a ignorância, não abusasse do marketing, não contasse vantagem, não prometesse mais do que competência, trabalho e seriedade. Um partido que ocupasse o espaço conservador.
André Lara Resende é economista
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