Por Tadeu Breda, na Revista do Brasil:
Não começou, mas se consolidou com um discurso brasileiro nas Nações Unidas. Em setembro de 2013, a presidenta Dilma Rousseff usou os microfones da 68ª Assembleia Geral da ONU para criticar duramente a espionagem realizada pelos Estados Unidos sobre a internet em todo o mundo. Muitas articulações políticas e diplomáticas depois, o país receberá em abril a NetMundial, cujo nome oficial já explica a que veio. Será uma Conferência Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança na Internet.
Para entender a relação entre o discurso de Dilma na ONU e o encontro internacional que ocorrerá em São Paulo, é preciso lembrar que, em agosto do ano passado, o jornalista norte-americano Glenn Greenwald havia revelado que a Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) bisbilhotara arquivos da estatal Petrobras e comunicações confidenciais da presidenta da República. Mais que isso, as denúncias mostravam que o Brasil tem sido o país mais vigiado pelos órgãos de inteligência do Big Brother.
Dilma não gostou de saber de tamanho escândalo pela imprensa. Primeiro, exigiu desculpas públicas do presidente Barack Obama pela interceptação, que é ilegal, e garantias fiáveis de que tais monitoramentos não voltariam a acontecer. Como nem as retratações nem os compromissos vieram, ela cancelou a viagem oficial que faria a Washington em outubro. E aproveitou a mais importante reunião de chefes de Estado que ocorre anualmente em Nova York para denunciar a espionagem e propor uma ação global contra os riscos do monitoramento da internet.
“É o momento de criarmos as condições para evitar que o espaço cibernético seja instrumentalizado como arma de guerra, por meio da espionagem, da sabotagem, dos ataques contra sistemas e infraestrutura de outros países”, discursou Dilma, lançando as bases de uma proposta para transformar a governança da rede mundial de computadores.
“Precisamos estabelecer mecanismos capazes de garantir princípios como: 1) liberdade de expressão, privacidade do indivíduo e respeito aos direitos humanos; 2) governança democrática, multilateral e aberta, exercida com transparência, estimulando a criação coletiva e a participação da sociedade, dos governos e do setor privado; 3) universalidade, que assegure o desenvolvimento social e humano e a construção de sociedades inclusivas e não discriminatórias; 4) diversidade cultural, sem imposição de crenças, costumes e valores; e 5) neutralidade da rede, ao respeitar apenas critérios técnicos e éticos, tornando inadmissível restrições por motivos políticos, comerciais, religiosos ou de qualquer outra natureza.”
Algumas semanas depois, o governo brasileiro seria procurado por executivos que administram a rede para conversar sobre a realização de uma conferência que discutisse globalmente essas cinco diretrizes. No início de outubro, Dilma recebeu em Brasília Fadi Chehadé, chefe da Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (Icann), entidade responsável pela concessão de domínios e endereços na rede, uma espécie de zelador da internet.
Na conversa, Chehadé disse que o Brasil havia assumido liderança global no tema da governança da internet, e que o modelo atual, centralizador demais, precisava evoluir. O executivo pediu empenho do governo brasileiro na busca por soluções práticas para recuperar a confiança das pessoas na segurança da rede. O discurso de Dilma e sua receptividade pelos grupos que administram o sistema foram os últimos tijolos do alicerce que viabilizaria a conferência.
Arena paralelaA NetMundial reunirá nos dias 23 e 24 deste mês de abril representantes de governos, empresas de tecnologia, sociedade civil, universidades e grupos técnicos de aproximadamente 150 países. O objetivo é construir acordos globais para transformar em realidade os princípios defendidos pela presidenta na ONU. O principal deles, como já fica subentendido pelo nome da conferência, é descentralizar a administração da internet.
A rede tem sido controlada pelos Estados Unidos desde sua criação: apesar de administrar todo o funcionamento da rede, o Icann é subordinado ao Departamento de Comércio norte-americano. Além disso, está sediado na Califórnia, submetendo-se à legislação do país. Mas isso pode mudar depois do NetMundial. Aliás, já começou a mudar.
Em março, os Estados Unidos comunicaram oficialmente que poderiam abrir mão do controle exclusivo do Icann e repassá-lo para uma entidade multissetorial internacional. Como constituir, organizar e formatar essa entidade deverá ser um dos pontos principais das discussões em São Paulo. Até porque Washington já alertou que não aceitará passar a administração da internet para outro governo ou grupo de governos.
A pluralidade que pode democratizar a administração da internet em todo o mundo já é uma realidade no Brasil. Aqui, a rede é gerida pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br), que reúne representantes do governo, empresas, sociedade civil, academia e grupos técnicos.
“O CGI.br passou a ser um modelo para a gestão global da internet por abrir espaço à participação de todos os setores”, avalia o ativista digital gaúcho Marcelo Branco. “Mas ainda não se sabe como será encaminhada essa transição. É exatamente isso que será discutido na NetMundial.”
O país ainda pode servir de modelo para um novo sistema de administração da internet caso consiga aprovar no Congresso, antes da conferência, o Projeto de Lei 2.126, de 2011, conhecido como Marco Civil da Internet. Em 25 de março, o texto passou na Câmara e seguiu para o Senado.
“Inspirado na proposta brasileira, o próprio criador da web, Tim Berners-Lee, sugeriu que fosse elaborado um marco civil global, que ele chamou de carta magna da internet”, continua Branco. “O sucesso da NetMundial será uma vitória diplomática para o Brasil.”
O ativista lembra, porém, que a liderança do país no tema não começou com o discurso de Dilma Rousseff. A intervenção presidencial na ONU teria sido apenas a ofensiva final. “Em 2003, na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, em Genebra, a delegação brasileira já havia defendido que a internet não podia mais ser governada unilateralmente”, argumenta Branco, que compareceu ao encontro.
“Nossa posição foi apoiada pela Argentina, pelos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e pela União Europeia, que concordavam em que os Estados Unidos não tinham direito de controlar sozinhos a internet.” Washington, porém, bloquearia qualquer discussão sobre a governança global da rede. Até agora. “As denúncias de espionagem, as reações internacionais e as críticas de Dilma nas Nações Unidas aumentaram a pressão e construíram uma conjuntura favorável às mudanças.”
Cerca de 800 pessoas terão acesso ao Grand Hyatt Hotel para as atividades do NetMundial. Mas há muito mais gente disposta a participar, sobretudo na sociedade civil. Para arrebanhar a contribuição de mais gente e enraizar as discussões, o governo brasileiro realizará a Arena NetMundial, evento paralelo ao encontro oficial, aberto ao público.
“A conferência tem potencial para se tornar o evento político mais importante do ano”, avalia Ricardo Poppi, coordenador-geral de Novas Mídias e Outras Linguagens de Participação da Secretaria-Geral da Presidência da República. “Vamos debater temas como direitos humanos, apropriação da rede, espionagem e segurança. Algumas propostas serão posteriormente apresentadas à NetMundial.”
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