Lei Fio Maravilha - PAULO CESAR DE ARAÚJO
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Lei Fio Maravilha - PAULO CESAR DE ARAÚJO


FOLHA DE SP - 19/10

A biografia é um gênero literário que incomoda. É transgressor, perturbador, afinal, narra a história de uma vida. E é assim desde que surgiu na Grécia com Plutarco. O recém-criado grupo Procure Saber tomou para si uma tarefa difícil: enquadrar o gênero. E escolheu a pior forma: defendendo a privacidade ao mesmo tempo que a cobrança de dinheiro para se autorizar um livro.

"Não é justo que só os biógrafos e seus editores lucrem com isso, e nunca o biografado ou os seus herdeiros", disse a produtora Paula Lavigne. Pelo visto o grupo deseja estabelecer o que podemos chamar aqui de Lei Fio Maravilha. Explico.

Em 1972, jogava no Flamengo um centroavante até então mais conhecido pelo apelido de cunho racista Fio Crioulo-doido. Fã do jogador, Jorge Ben Jor decidiu compor uma canção em sua homenagem, a qual deu o título de "Fio Maravilha".

Todo mundo gostou da música, menos o próprio Fio, que foi à Justiça contra o compositor. Alegou que ele estava usando o seu nome e a sua imagem com finalidade comercial e que não era justo apenas Ben Jor lucrar com o sucesso daquela obra. O jogador então cobrou para si parte do que a música rendia em direitos autorais.

Fio nada conseguiu na época, mas sua antiga ideia parece nortear agora o grupo Procure Saber. Em nota em "O Globo", o cantor Djavan não se avexou de também cobrar "um percentual oriundo da venda desse produto (o livro) destinado ao biografado". Felizmente essa ideia não foi invocada pela igreja quando Roberto Carlos gravou canções como "Nossa Senhora" e "Jesus Cristo", que também se utilizam do nome e da imagem de figuras do Evangelho para fins comerciais.

Nada também foi cobrado de Gilberto Gil por ele cantar Chacrinha e sua Terezinha em "Aquele Abraço". Nem de Caetano Veloso, por canções como "Giulietta Masina", sobre a atriz italiana, e "Menino do Rio", sobre o surfista Petit.

Em todos esses casos, os compositores se valeram de um tema para desenvolver obras que, por tratarem de personagens que existiram, podemos chamar de "canções de não-ficção". Um autor de livro também trabalha com temas que, no caso dos biógrafos, são personagens reais. Tim Maia foi tema de um livro de Nelson Motta, assim como JK foi tema de um livro de Claudio Bojunga.

Mas parece que o grupo Procure Saber quer liberdade de expressão apenas para os autores de canções. Para quem escreve livros, faz cinedocumentários ou minisséries, o grupo deseja autorização prévia e cobrar dividendos.

Ressalte-se, porém, que tanto escritores como compositores não podem falar qualquer coisa sobre os outros. Tiririca, por exemplo, foi denunciado por racismo na música "Veja os Cabelos Dela".

Por outros motivos, na ditadura foram proibidas canções de Chico Buarque, de Caetano e de Gil. Hoje, o que prevalece é a censura a biografias que atinge ou já atingiu livros de Fernando Morais, Ruy Castro, João Máximo, Carlos Didier e outros --além do meu próprio sobre Roberto Carlos, que está há seis anos e oito meses fora de circulação.

Pensadores como Darcy Ribeiro e Mangabeira Unger profetizaram que a civilização mestiça do Brasil poderá ser uma nova Roma. Eu compartilho dessa esperança, mas certamente não será no campo da legislação sobre biografias que iremos ensinar algo ao mundo.

Em países como Inglaterra, França e EUA, muito à frente de nós, surgiram ou foram consagradas ideias iluministas como a liberdade de expressão e o direito à informação. Não por acaso, nesses países biografias circulam livremente. Enquanto isso, o Brasil, com sua tradição autoritária, caminha em retrocesso na direção da Lei Fio Maravilha.




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