Por Patrícia Benvenuti, no jornal Brasil de Fato:Quase 50 anos depois do golpe que derrubou João Goulart, a Rede Globo assumiu, publicamente, ter apoiado a manobra. O reconhecimento veio por meio de um editorial publicado no site do jornal O Globo em 31 de agosto e lido dois dias depois no Jornal Nacional. “A lembrança é sempre um incômodo para o jornal, mas não há como refutá-la. É História”, afirma o texto.
Como justificativa para amparar a ação dos militares, que culminou com o início da ditadura civil-militar (1964-1984), a Rede Globo alega “temor de um outro golpe, a ser desfechado pelo presidente João Goulart, com amplo apoio de sindicatos”. De acordo com o jornal, “naquele contexto, o golpe, chamado de ‘Revolução’, termo adotado pelo Globo durante muito tempo, era visto pelo jornal como a única alternativa para manter no Brasil uma democracia”.
O editorial teve grande repercussão na internet, sobretudo nas redes sociais. Os internautas, em geral, criticavam a demora para o reconhecimento do “erro” e questionavam os motivos que levaram a emissora a assumi-lo.
Para o professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Laurindo Leal Filho, o Lalo, a intenção da Globo é “limpar” sua imagem junto ao público. A tarefa, no entanto, não é tão simples. Lalo recorda que o apoio ao golpe não foi único “tropeço” da emissora ao longo de sua história.
“Não foi só o golpe que ela [Globo] apoiou. Ela vem apoiando tudo que é antissocial, antidemocrático e que vai contra os interesses da população”, resume.
O presidente do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé, Altamiro Borges, também faz críticas ao editorial. Ele lembra que a participação da imprensa no período foi além de um simples apoio.
“[O texto] tenta justificar o golpe de 1964 com o clamor das massas, quando ela [Globo], na verdade, ajudou a preparar o golpe. Não teve nada de erro editorial, foi um crime que eles cometeram”, acusa o jornalista, que ressalta a participação de outros veículos no episódio. “Com exceção do jornal Última Hora, toda a imprensa – Folha, Estadão, Zero Hora, Estado de Minas – criou o clima e orquestrou para o golpe”, pontua.
O editorial também gerou manifestações do Clube Militar, que classificou o pedido de desculpas como “mentira deslavada”. De acordo com uma nota da entidade, a mudança de posição do grupo ocorre pela facilidade em se pesquisar o conteúdo publicado em jornais da época. Os militares rechaçam, ainda, o argumento de que o apoio à ditadura foi um equívoco momentâneo.
“O apoio ao Movimento de 64 ocorreu antes, durante e por muito tempo depois da deposição de Jango; em segundo lugar, não se trata de posição equivocada ‘da redação’, mas de posicionamento político firmemente defendido por seu proprietário, diretor e redator chefe, Roberto Marinho, como comprovam as edições da época”.
CriseO lançamento do editorial ocorre em um momento difícil para as Organizações Globo. Depois de décadas produzindo noticiários, nos últimos tempos a corporação virou, ela própria, tema de reportagens. Sua imagem foi associada às denúncias de pagamento de propinas envolvendo o ex-presidente da CBF, Ricardo Teixeira, e da Fifa, João Havelange.
Em junho a empresa foi alvo das mobilizações que se iniciaram com os protestos contra o aumento das tarifas de transporte público. Os protestos contra a emissora continuaram nos meses seguintes. Em 30 de agosto – um dia antes da publicação do editorial – houve atos em pelo menos sete cidades.
“A grande mídia se viu em meio a um processo em que ela nunca esteve antes, que é a sociedade questionando diretamente a falta de democracia nos meios de comunicação de massa no país”, analisa o coordenador do Coletivo Intervozes, Pedro Ekman.
Recentemente, outro episódio colocou a Globo em uma posição incômoda: a suspeita de sonegação de R$ 183 milhões em impostos referentes à exibição da Copa do Mundo de 2002. Somados os juros e multas, o valor chega a R$ 615 milhões. Silenciado pela mídia corporativa, o caso só ganhou destaque devido à pressão na internet. “Se não fosse a blogosfera e as redes sociais esse assunto nem vinha à tona”, comenta Altamiro Borges.
Queda de audiênciaA queda de audiência é outra preocupação. No ano passado, a emissora amargou a pior audiência de sua história. Segundo o Ibope, a Globo teve, em média, 14,7 pontos (cada ponto equivale a 60 mil domicílios) contra 16,3 em 2011. Seu principal programa jornalístico, o Jornal Nacional, atualmente está na casa dos 26,3 pontos, um recorde negativo. Atrações outrora poderosas como as novelas e as partidas de futebol também despencam – essas últimas, nos últimos 13 anos, registraram uma baixa de 35% nas transmissões aos domingos e às quartas-feiras.
A fuga de telespectadores, no entanto, não é um fenômeno exclusivo da Globo. Canais como Record, SBT e RedeTV também tiveram perdas. Só em 2012, o número de aparelhos ligados em televisões abertas caiu aproximadamente 5%.
Ruim para todos, pior ainda para a Globo, que vê abalados seu poder e liderança no mercado. A preocupação maior hoje é com os “gigantes” da internet, principalmente o Google. Segundo executivos do Projeto Inter-Meios, um levantamento feito pela revista Meio & Mensagem, o site já é o segundo grupo que mais arrecada publicidades no país, perdendo apenas para o conglomerado da família Marinho.
Reposicionando a marcaA emissora tenta correr atrás do prejuízo. No final de agosto, o diretor-geral da Globo Carlos Henrique Schroder anunciou mudanças na estrutura organizacional da emissora. O novo arranjo aproxima a Globo da Globosat – braço da empresa que comanda os canais por assinatura ligados ao grupo – e da Globo Filmes. A ideia é investir mais na criação de conteúdo para TV fechada e internet, dois segmentos em crescimento.
Para Lalo, a publicação do editorial reconhecendo o apoio ao golpe faz parte desse novo plano da emissora, que aposta em um reposicionamento de marca – estratégia que tem como objetivo redefinir a competitividade da marca no mercado.
“Essa posição procura dar uma face mais suave à Globo em relação à sociedade e ao governo. É uma tentativa de se reposicionar para manter o seu espaço comercial”, avalia.
Para o coordenador do Coletivo Intervozes, o reposicionamento de marca só terá êxito se a emissora mudar sua linha editorial acerca de vários temas e, principalmente, se aceitar o debate sobre a regulação dos meios de comunicação.
“Para ser absolutamente franca com a sociedade, ela [Globo] precisa abrir o debate sobre o marco regulatório das comunicações brasileiras, que é um debate que ela ainda se recusa a fazer”, defende Pedro Ekman.
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