Modernidade triste? - CONTARDO CALLIGARIS
Geral

Modernidade triste? - CONTARDO CALLIGARIS


FOLHA DE SP - 12/09

Uma mensagem cristã de desvalorização do presente e repulsa ao prazer está na origem de nossa cultura


No século 4 da nossa era, nos mosteiros da Europa, a tristeza, "accidia" em latim, era considerada pecado grave, e as regras monásticas se esforçavam para identificá-la e combatê-la. Mesmo assim, muitos monges continuavam tristes.

A Europa era uma desolação. Das janelas de seus oásis de (relativa) tranquilidade, os monges podiam enxergar o horror. A cultura clássica, grega e romana, era esquecida --ignorada pela imensa maioria de iletrados ou perdida no descaso pelos manuscritos antigos. O desabamento do Império Romano transformara o território em uma terra de ninguém, em que o poder ficava com as hordas de mercenários e bandidos ocasionais. Suficiente para qualquer um ficar triste.

Mas talvez haja uma razão menos contingente para a tristeza aparecer como uma nova aflição, bem na hora em que a cultura clássica deixava seu lugar ao cristianismo. É irônico, aliás, que a dita tristeza ameaçasse logo os monges, que eram guardiões dos textos gregos e romanos que sobravam, mas que também praticavam o palimpsesto -- a arte de apagar os manuscritos antigos para usar os pergaminhos novamente, copiando os textos da nova religião.

Note-se também que, desde a acídia dos monges, a tristeza parece ter se tornado um traço distintivo da cultura ocidental e, especificamente, da modernidade, do "spleen" romântico até a depressão clínica, hoje diagnosticada a esmo. Por que, então, seríamos culturalmente tristes?

Naquele momento, no século 4, morria uma cultura para a qual o que importava era viver o momento, e nascia outra, para a qual nossa vida era apenas uma provação, pela qual ganharíamos ou perderíamos a chance de uma suposta eternidade feliz.

Desde então, é como se a vida que importa nunca mais fosse a que estamos vivendo; o pátio de casa não basta, somos infelizes e insatisfeitos porque a vida "verdadeira" nos espera lá onde ainda não chegamos.

A cultura clássica, que morria, tinha valorizado um estilo de vida norteado por um uso discreto e constante dos deleites da mente e da carne. A cultura cristã, que nascia, apontava no prazer um parente do vício e valorizava o sacrifício e a renúncia, como se Deus tivesse um apreço por nosso sofrimento.

Não sei por que Deus reconheceria algum mérito nas renúncias da gente. Freud responderia, provavelmente, que esta é a função social da religião: controlar nossos impulsos, impondo as renúncias que são necessárias para que a convivência social se torne possível. Muitos iluministas pensaram a mesma coisa.

Graças ao cristianismo, ao considerar castigos e recompensas na eternidade, nós nos tornaríamos governáveis -- sem medo do além, não haveria convívio possível (o paradoxo aqui é que essa consideração não inibiu a própria Igreja, que durante séculos e séculos foi uma instituição de crueldade inaudita).

A cultura clássica (Epicuro, por exemplo) preferia tratar os humanos como adultos e apostar que eles se disciplinariam sem ter que acreditar em um além e sem precisar de um mercado de punições e prêmios eternos: a consciência da finitude da vida seria suficiente para torná-los comedidos e dignos.

Em um jantar na casa de Thérèse Parisot, em dezembro de 1970 (sei a data pois a conversa foi sobre as condenações dos processos de Burgos), Jacques Lacan, o psicanalista francês, chegou com um pequeno volume in-octavo. Era um panfleto anônimo, segundo o qual o verdadeiro messias não era Cristo, mas Epicuro (peço que se manifestem os bibliófilos que reconhecerem o livro). Certamente, a obra era a provocação de um libertino dos séculos 17 ou 18.

Mas a questão continua valendo: será que uma modernidade seria possível sem a desvalorização do momento presente e sem a repulsa ao prazer que são partes da mensagem cristã e que talvez sejam a fonte de nossa tristeza crônica?

Qual modernidade seria possível com Epicuro, e não contra ele? Somos modernos graças ao cristianismo ou somos modernos graças ao materialismo e à disciplina dos prazeres que atravessaram a modernidade perseguidos e silenciados pelo cristianismo?

Para inventar uma resposta, um livro imperdível: dos ensaios que li nos últimos 15 anos, nenhum me prendeu e me tocou tanto quanto "A Virada, o Nascimento do Mundo Moderno", de Stephen Greenblatt.




- Da Natureza Das Coisas - Luiz Felipe PondÉ
FOLHA DE SP - 20/04 Não queira pegar todas as mulheres do mundo, mas cuide bem daquelas que vierem a sua cama Em nosso mundo, não há natureza das coisas, entende-se que tudo seja uma construção social. Delírio puro. Prefiro os antigos, justamente...

- Hedonistas? - Contardo Calligaris
FOLHA DE SP - 01/08 De onde vem a ideia dominante, de que a renúncia ao prazer sempre ganha pontos? O papa Francisco, quando era o cardeal Jorge Bergoglio, de Buenos Aires, conversava de religião com o amigo rabino Abraham Skorka. Os diálogos estão...

- O Sol Sobre O Pântano - Luiz Felipe PondÉ
FOLHA DE SP - 03/06 A mulher é mulher porque sangra e, quando não mais sangra, se sente menos mulher "Somos todos leprosos!", afirma o Monsenhor no livro "O Casamento", de Nelson Rodrigues, muito bem adaptado e dirigido por Johana Albuquerque, em cartaz...

- A Ética E O Cristianismo
Quando a antiga cultura greco-romana entrou em decadência, elevou-se o cristianismo, religião fincada sobre a moral judaica e as suas leis. Os deuses antigos dão passagem para um Deus único, a quem o homem deve obediência e servir às suas leis....

- O Novo Fetiche Do Capitalismo
Por Frei Betto, no sítio da Adital: A modernidade, período que se estendeu pelos últimos cinco séculos, está em crise. Vivemos, hoje, não uma época de mudanças, mas uma mudança de época. No milênio que começa emerge algo imprecisamente chamado...



Geral








.