NÃO FUI CONVIDADA PARA ESSA FESTA. E SE FOSSE NÃO IRIA
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NÃO FUI CONVIDADA PARA ESSA FESTA. E SE FOSSE NÃO IRIA


Não sei pra você, mas pra mim a cena de Taxi Driver que mostra que Travis (interpretado por Robert De Niro) não bate bem não é quando ele raspa a cabeça, quebra a TV, mata um gigolô ou planeja assassinar um candidato a presidente. Não. É quando ele leva, num primeiro encontro, a moça por quem está fascinado (Cybill Shepherd) para ver um filme pornô. Esse momento revela que ele desconhece o funcionamento da sociedade, e não tem a menor idéia do que pensa uma mulher.

Na época do filme, 1976, ainda existiam cinemas desse tipo. Hoje esses inferninhos foram substituídos pelo DVD e a internet. De qualquer modo, mais pessoas vêem filmes pornôs do que vão ao cinema comercial de Hollywood. Ainda assim não seria aceitável a um casal no seu primeiro encontro assistir a algo pornô. Mas depois de quantas saídas pode-se convidar a parceira pra ver um pornô? Uma semana? Meses? Anos, quando a paixão já deu lugar à monotonia da monogamia? Bom, eu tentei ver um filme pornô com meu marido. Como cinéfila, escolhi logo um clássico, Garganta Profunda. No entanto, se o objetivo era despertar vontade, não funcionou. Como crítica de cinema, fiquei centrada demais nos diálogos risíveis e nas atuações canastronas. Quando a trama tornou-se repetitiva, desliguei o aparelho de vídeo, porque ver cena de sexo seguida de cena de sexo equivale a ver um filme de ação só com perseguições de carros e explosões. Puro tédio.

Tá certo que não sou consumidora padrão de nada, então logicamente não o seria de pornografia. Noutra encarnação, quando trabalhei numa locadora, achava graciosos os títulos pornôs que imitavam grandes sucessos do cinema, como Mamãezinha Querida, e havia também algum com uma referência ao templo da perdição. Mas pornografia sempre me pareceu ter muito mais ligação com comércio que com sexo. E as cenas pornôs são tão cheias de detalhes e closes que definitivamente não me despertam desejo. Se eu quisesse ver uma vagina tão de perto, pediria um espelhinho pra minha ginecologista durante o papanicolau. É gráfico demais, e reduz as atrizes a pedaços de carne. A questão se ver um filme pornô me faz ficar com vontade de transar é parecida com outra: após ver um Albergue ou Jogos Mortais da vida (um gênero não por coincidência apelidado de torture porn), eu fico com vontade de sair por aí matando e torturando? Preciso deixar claro que a resposta pra ambas é não.

Mas essa sou eu. Desconheço o efeito dos filmes pornôs nos homens, e pra ser honesta, conheço poucas mulheres que vêem pornôs. E não é por causa do velho clichê que mulher tem menos tesão que homem, mas porque a indústria pornô simplesmente nos ignora. É uma indústria comandada por homens e pra homens. O mercado é quase todo masculino. Filme com dois ou mais homens transando é pro público masculino, filme com homem e mulher transando é pro público masculino, e filme com duas mulheres transando (cena obrigatória em qualquer filme hetero) é pro público masculino. Pornografia pra mulher é romance vendido em banca de jornal.

Um homem que vê montes de filmes pornôs vai cometer estupro? Provavelmente não, assim como um homem que vê dezenas de bang-bangs não vai sacar sua pistola e matar gente. Mas é certo que esse tipo de exposição causa algum efeito. Ver tiroteios atenua a violência, faz com que o espectador não lhe dê tanta importância, e ver uma demonstração tão comercial do sexo pode fazer o mesmo. Andrea Dworkin diz que pornografia pode tornar os homens ainda mais predadores por fazê-los confundir as mulheres da vida real com estrelas pornôs. Já Naomi Wolf acha o contrário: que a pornografia faz as pessoas mais solitárias, e torna os homens menos desejosos de transar, porque eles esperam que as mulheres sejam estrelas pornôs. Não há mais mistério e sedução em ver uma mulher pelada na sua frente. Graças aos filmes pornôs, não há mais mistério no sexo (e isso pode ser bom e ruim).

Só sei que pobre do menino que tiver apenas a pornografia como única forma de educação sexual, porque filmes pornôs passam uma idéia errada da sexualidade. Pros adolescentes do sexo masculino, pornografia pode causar obsessões tão sérias quanto a provocada nas meninas que só vêem modelos magérrimas na mídia (anorexia, bulimia). Rapazes comparam seus pênis com o do astro pornô e pensam que tem algo de errado com eles. Acham que não são ou serão bons parceiros sexuais porque não ejaculam litros de esperma, ou porque o ato não dura tanto como nos filmes pornôs. Ignoram que exista edição, Viagra, efeitos especiais, retoques. Muito parecido mesmo com uma menina reparando que seu corpo não é idêntico ao da Giselle. A diferença entre essas obsessões femininas e masculinas é que os meninos precisam pegar um filme ou uma revista pornô para sofrer essa má influência. Nós mulheres somos expostas a um só padrão de beleza diariamente, sem precisar adquirir nada. É o “privilégio” da nossa condição feminina.

Pois é, outro problema pra minha aceitação da indústria pornô é que sempre fui feminista. E consigo pensar em poucos lugares menos aconchegantes pra mulheres que na indústria pornô. Provavelmente a situação mudou desde que a Linda Lovelace recebeu 200 dólares para fazer Garganta, que rendeu milhões aos produtores. Porém, ainda é uma indústria em que astros geralmente ganham mais que estrelas e que, por causa de um padrão duplo de sexualidade, vê promiscuidade para homens e mulheres de um jeito muito diferente (uma camisa feminista diz: “Eu achava que era uma vadia, até notar que estava agindo como um homem”). Há várias cenas de humilhações de mulheres em filmes pornôs, para satisfazer um nicho do mercado. Sem mencionar as cenas que incluem violência contra as mulheres, atrocidades como simulações de estupros. Esse é um dos exemplos que prova que a indústria pornô é pensada por homens para homens, pois assistir a uma cena de estupro provoca um efeito totalmente diverso num homem e numa mulher. Para uma mulher, a ameaça de estupro é constante e real. Portanto, ver uma cena de estupro num filme é diferente de ver um assassinato, porque não é uma em cada sete pessoas que é morta, sabe?

Tem quem ache que filmes pornôs dão poder às mulheres. Pessoalmente, esse argumento me soa tão fraco quanto o de uma moça muçulmana que tentou me convencer dizendo que sua religião trata hiper bem suas mulheres, apesar de obrigá-las a usar véus, promover, em vários casos, a mutilação do clitóris, e incentivar maridos a punirem fisicamente suas esposas. Segundo essa moça, os homens islâmicos idolatram suas mulheres: “Somos mães de seus filhos! Eles nos põem num altar!”. Ou seja, desde que a mulher seja mãe, ela será bem tratada. Nos filmes pornôs, a garantia dos bons tratos não existe nem que a mulher cumpra suas únicas duas funções – ser bonita e estar disponível pra fazer sexo com todas as pessoas (e animais) que aparecerem na sua frente.

No entanto, embora eu não tenha nenhum apreço pela pornografia, sou contra a censura (sou a favor dela apenas para a parte da indústria que lida com pedofilia e zoofilia). Mas me dou o direito de sonhar com um mundo onde a sexualidade não precise ser vendida em pacotes para ser consumida. Também não sou muito fã de sex shops, porque é mais um meio de tentar lucrar em cima de uma coisa que deveria ser de graça. Sexo não deveria envolver uma competição preocupada em criar atletas sexuais e bater recorde de número de parceiras. Sexo é um dos raríssimos prazeres grátis que temos na vida. Essa necessidade capitalista de agregar valor a algo tão natural me lembra Admirável Mundo Novo, em que os cidadãos sofrem lavagem cerebral para detestar ficar ao ar livre (que é nada rentável), ao mesmo tempo que são condicionados a sair para praticar esportes – esportes que pedem equipamento caríssimo, lógico. Uma simples caminhada não vale.


Este texto meu sobre pornografia foi publicado na revista eletrônica Woof Magazine de maio.





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