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Novo ciclo na Argentina - EDITORIAL CORREIO BRAZILIENSE
CORREIO BRAZILIENSE - 27/10
Será sempre natural que o Brasil acompanhe com olhos mais do que atentos um processo eleitoral na Argentina, tanto mais quando a leitura das urnas promete traçar os primeiros prognósticos sobre a disputa de 2015 pela Casa Rosada. Neste domingo, porém, é uma questão de alcance mais longo que estará nas mãos dos votantes quando se pronunciarem sobre a renovação parcial da Câmara dos Deputados e do Senado. Trata-se do futuro do projeto político da presidente Cristina Kirchner, começando pelo desafio da governabilidade nos dois anos de mandato que tem pela frente.
A julgar pelo que apontam as pesquisas, o cenário político argentino não sofrerá propriamente um abalo sísmico, mas insinua-se no mínimo uma significativa reacomodação de camadas geológicas. E esse processo, com os possíveis desdobramentos, se assenta na natureza do projeto político encarnado pela presidente. Temperamental, sanguínea, recorrentemente censurada pelos opositores por sua aparente instabilidade pessoal, a viúva de Néstor Kirchner projetou-se para além de uma mera sucessora de conveniência. Sob sua batuta, ganhou forma e contornos um grupo político específico no âmbito do Partido Justicialista (PJ), a legenda nacionalista fundada em meados do século passado pelo caudilho Juan Domingo Perón.
Em certo sentido, o kirchnerismo resgatou precisamente a vertente mais autóctone e orgulhosa do peronismo, a mesma que esteve no cerne das crises militares intermitentes das décadas de 1960 e 1970 - e que sobreviveu quase como tal à ditadura que vigorou entre 1976 e 1983. O PJ retornaria ao poder apenas em 1989, com Carlos Menem, mas então com um ideário frontalmente oposto ao do patriarca. Se, em décadas passadas, as bases juvenis e sindicais do caudilho entoavam o lema "ni yankis, ni marxistas: peronistas", Menem proclamou uma era de "relações carnais" entre Argentina e EUA.
Mais até do que a guinada neonacionalista, o casal Kirchner recolocou em pauta um traço da história política argentina que parecia ter desaparecido com a morte de Perón: o personalismo. E essa vertente se aprofundou marcadamente nos seis anos de governo da atual presidente, que inclusive invocou com desenvoltura a imagem da carismática mulher do caudilho, Evita Perón, adotada pela massa justicialista como "mãe dos pobres", "padroeira dos descamisados".
Nos duros embates que manteve com setores empresariais, com a mídia e com os adversários políticos, a presidente argentina teve como retaguarda uma maioria segura em ambas as casas do Congresso. Mas sua base de apoio se mostra agora menos sólida do que parecia. Medidas econômicas calculadas cada vez menos pela racionalidade, e mais pelas conveniências de um projeto pessoal de poder, produziram uma inflação que apenas as manobras estatísticas são capazes de atenuar. E, na mesma toada em que sobe o custo de vida, cai a popularidade da presidente.
Os prognósticos indicam que, com o novo Congresso, não haverá bases para Cristina emendar a Constituição e qualificar-se para a disputa de um terceiro mandato. E, na ausência do "K" dominante na última década, todo o cenário político da Argentina caminha para um período menos previsível. É nesse terreno incerto que o Brasil terá de trafegar nos próximos anos com um parceiro que, por opção estratégica feita há três décadas, tornou-se cônjuge de uma união - esta sim - indissolúvel.
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