Geral
O Brasil perdeu o que tinha de melhor
Mário Guerreiro, Filósofo
O brasileiro pode ter muitos defeitos e eu os tenho apontado há algum tempo, mas um defeito ele nunca teve e dificilmente terá: falta de senso de humor – um dos mais graves defeitos do ser humano!
O brasileiro é capaz de rir até mesmo da própria desgraça, e nas situações trágicas em que ele perde tudo, só não perde essa extraordinária capacidade.
Por incrível que pareça um hai-kai de Matsuo Basho - grande poeta japonês do período Tokugawa - expressa, com grande sutileza, exatamente isso que eu disse a respeito do brasileiro.
Um ladrão entrou na sua casa e levou tudo quanto lá havia, mas parece que, do ponto de vista do poeta, só não levou mesmo o que não podia levar...
O ladrão
Só se esqueceu de levar
A lua da janela
Há quem veja nessa capacidade de rir de si próprio sinais de desdém em relação a tudo e ausência de amor próprio do brasileiro considerando que “desgraça pouca é bobagem”.
Mas o grande Nietzsche que seguramente não carecia de amor próprio e de indiferença a tudo, não que disse que “Zombo daquele que não zomba de si próprio”?!
Contrariamente aos que vêem os sinais de falta de autoestima e desdém no riso do brasileiro, eu vejo sinais das virtudes da determinação e da superação dos maiores infortúnios. “Levanta, sacode a poeira e dá volta por cima”. “O que não mata, engorda”. “Brasileiro, profissão: esperança”.
Afinal, o que importa não é o que nos atinge, mas sim a maneira como somos atingidos e nossa reação diante da coisa. “O que dá pra rir dá pra chorar; questão de peso e de medida, problema de hora e de lugar”.
O Brasil é um país fora de série, tanto no que tem de bom como no que tem de ruim. Tem uma personalidade sui generis. Nossos políticos nos fazem rir e nossos humoristas nos fazem pensar na política.
Mas há ao menos dois tipos de humorista: aqueles cujo senso de humor lhes é endógeno: nascem com ele, vivem com ele e morrem com ele.
Como Voltaire que, no seu leito de morte, recebeu um padre e este ansioso por convertê-lo, disse para ele “Meu filho, eu sou um embaixador de Deus”.
E Voltaire: “Então, mostre-me então suas credenciais.”
E aqueles que fazem rir por ofício, como coveiros que não cavam covas para malhar os braços nem por lazer e diversão.
Os primeiros fazem humor em cena e fora de cena: são mesmo assim e não conseguem ser diferentes do que são. Os segundos só o fazem por dever de ofício: fora de cena ou desempenhando atividades sérias, eles carecem totalmente de senso de humor.
Vejam o caso de Agildo (Barata) Ribeiro. Ele é um sujeito bem humorado dentro e fora cena. O humor é parte constituinte de seu ser. Antes, durante e depois do Cabaré do Barata, aquele quadro cômico da TV em que Agildo conversava com bonecos caricatos de políticos famosos, como Brizola, Maluf, Lula, etc.
Vejam o caso de Luís Fernando Veríssimo. Quando ele se propõe a fazer humor cria estórias e tipos assaz hilariantes, como o Analista de Bagé, o maior psicanalista vivo depois de Freud. Bá! Índio velho muy vivo!
Porém, quando ele fala sério em seus artigos de jornal exala um esquerdismo delirante e perde totalmente seu sense of humour. Só me faz rir para não chorar ou para não decepcionar um velho amigo que contou uma piada “infame”.
Mas não é desses dois humoristas que eu pretendo falar, mas sim de outros dois.
No ano da graça ou da desgraça de 2012, lá pelos terríveis Idos de Março em que Júlio César foi traiçoeiramente apunhalado por seu filho adotivo Brutus e alguns senadores de Roma, o Brasil ficou de luto.
Perdeu dois de seus maiores humoristas: Chico Anysio e poucos dias depois Millôr Fernandes. Cada qual desenvolveu um estilo de humor, mas ambos foram excelentes no que faziam.
Chico criava um humor mais popular, embora nem sempre tivesse se limitado a simples bazófia ou ao besteirol. Muitas vezes seu humor era crítico dos costumes e dos tipos humanos. Foi talvez o mais rico criador de tipos, depois de Balzac na Comédia Humana – que, como A Divina Comédia de Dante, não era coisa para rir - pois criou mais de 200 tipos ao longo de sua carreira.
Examinando detidamente seus tipos mais conhecidos, podemos perceber na sua caracterização uma aguçada observação de figuras populares, principalmente do Nordeste bem conhecido por ele, que era de Maranguape (CE).
Mas ele não se limitou a ser um humorista regional nordestino. Sua tipologia incluía tipos cariocas, paulistas e até a gaúcha Salomé ao telefone conversando com figuras importantes do cenário nacional com a maior intimidade de uma conversa de comadres.
Foram tantos e tão interessantes que careço de espaço para falar sobre eles. Destaco o Painho, aquele pai-de-santo baiano que desmunhecava [Tivesse sido criado hoje, Chico seria considerado homofóbico e teria sido censurado!].
Destaco Bento Carneiro, o vampiro brasileiro, e seu fiel escudeiro Calunga. Segundo penso, o tipo mais hilariante do ponto de vista plástico da indumentária e da maquiagem.
Lembro-me bem do dia em que ele cravou os caninos no pescoço de numa vítima, mas tudo que conseguiu foi quebrar os dentes, podres que estavam por ele não ter dinheiro para pagar dentista. No Brasil, até vampiro, para sugar o sangue, é incompetente!
E havia também tipos políticos, como o notável deputado Justo Veríssimo, o representante do povo mais sincero de todos os tempos, que tinha um projeto para acabar com a fome no Brasil.
Não distribuindo por toda parte bolsas-família, mas sim dando comida envenenada para os pobres. De fato, sem pobres não há pobreza, a não ser pobreza de espírito. Mas isto não tem remédio que cure!
Justo Veríssimo era dotado de uma franqueza cavalar capaz de superar Immanuel Kant e Benjamin Franklin, que alegavam nunca ter mentido em todas as suas vidas. Ele estava sempre dizendo coisas que políticos só costumam dizer em off, cercado de apaniguados complacentes.
Coisas tais como: “Eu quero mais que os pobres se explodam”, “Eu só quero mesmo é me arrumar”. “Quem gosta de pobre é empada de botequim e chinelo velho”.
Se Chico fazia um humor mais popular, mas nunca descambando para o baixo nível e para a grosseria, Millôr fazia um humor mais intelectual, mas nunca descambando para o hermetismo e para o pedantismo.
Além de humorista, ele era um ótimo dramaturgo e tradutor de Shakespeare, por quem tinha grande admiração.
Conheci Chico ouvindo a Rádio Mayerink Veiga. Quando eu era criança não perdia A Cidade se Diverte, onde Chico Anysio entrava no ar juntamente com Matinhos, Walter Dávila, Emma Dávila e outros Conheci Millôr lendo a revista Cruzeiro em que ele adotou o pseudônimo de Vão Gogo e tinha uma coluna chamada Pif-Paf.
Nunca ninguém foi capaz de escrever peças de teatro tão breves e desconcertantes como as do Teatrinho Relâmpago, um vapt-vupt que terminava invariavelmente com o refrão: Cai rapidamente o pano.
Anos depois ele passou a escrever no Pasquim, juntamente com o Jaguar, Paulo Francis e outros. E finalmente encerrou sua carreira em Veja.
Para mim, Millôr foi o humorista brasileiro mais inteligente e perspicaz, de uma coerência a toda prova, que sempre se manteve fiel ao que pensava e nunca teve medo de dizer o que pensava, mesmo sabendo que iria desagradar a muitos.
Ora, nem Cristo conseguiu agradar a todos e aquele que tenta fazer tal coisa sempre acaba desagradando a si próprio.
Seu livro A Bíblia do Caos é uma ótima seleção das melhores do Millôr. E entre suas melhores e das últimas foi uma a respeito dos guerrilheiros de 1968 que, na Nova República, receberam polpudas indenizações e pensões vitalícias para suas viúvas.
Millôr chegou à conclusão de que sua ação guerrilheira nada mais era do que um investimento de longo prazo...
Mas eu não tinha dito que nossos políticos são pândegos e nossos humoristas nos fazem pensar na política?!
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