“Esse lance da água do México... Não levanto bandeiras porque, se fosse pra Índia, por exemplo, não beberia água da bica NEM MORTA. Não conheço ninguém que tenha ido até lá e voltado sem uma infecção intestinal. Do México eu não sei, mas isso tem muito a ver com a personagem da Charlotte, asséptica e certinha, e dentro do contexto, faz sentido. E sim, se elas estivessem no Brasil eu ia achar graça do mesmo jeito. :)”
Comecei a responder nos comentários e ficou longo demais, virou um post. Então aqui vai:
Isso da água do México é ultrajante, Lolla. Porque é um dos clichês que os países ricos, principalmente os EUA, falam de TODOS os países pobres. Eu me lembro quando ensinava usando o Interchange (que é o bestseller da editora Cambridge pra se ensinar inglês no mundo) de um dos subcapítulos do livro. Era sobre o Brasil. Sabe o título? "Don't drink the water". Ah, é de matar. Brasil, México, e outros países pobres têm mil e uma coisas bonitas, e americano se concentra na água?! Sendo que milhões de pessoas bebem essa água todo dia e não morrem nem ficam doentes? Escrevem um capítulo enfocando o Brasil (apenas porque o Brasil é o maior mercado do Interchange, depois do Japão), e falam da água que não se deve beber?! As personagens de Sex and the City vão a um belo hotel mexicano de alto padrão, e o filme se centra no mesmo “Não beba a água”?! As amigas estranham que Charlotte despreze os banquetes do hotel e coma seu próprio lanchinho made in USA. Afinal, dizem elas, “Estamos num resort cinco estrelas”. A resposta dela, "But it's still Mexico" (“Mas ainda é o México”), é uma afronta a todos os países em desenvolvimento. É meio que dizer que não adianta o país se desenvolver, melhorar aos poucos, inclusive oferecendo o melhor aos turistas, sempre será um atraso. E essa fala é um escândalo dentro de um contexto totalmente discriminatório que existe nos EUA, em que a maior parte da população apóia a construção de um muro pra impedir que imigrantes ilegais entrem no país. É jogar lenha na fogueira. É fomentar preconceito. Toda vez que se fala em barrar imigrantes, o pessoal no fundo se refere aos mexicanos. A América é um país feito por imigrantes, mas quer que os “hispânicos” (aqui isso é raça!) morram. Tem medo que os EUA deixem de ser um país que fala em inglês, pra ser um país (horror dos horrores!) bilíngue. Enquanto isso, 10% dos homens mexicanos vivem nos EUA. Pegam um trabalho pesado que ninguém mais quer. Portanto, o contexto do “ainda é México” é muito maior que o universo da Charlotte. É uma fala extremamente ofensiva. E não importa se vem de uma só personagem. Sex and the City valida as opiniões dela. Quando ela tem diarréia por acidentalmente engolir duas gotas de água mexicana, o filme tá dizendo: “Ela tem razão”. Quando o público americano se acaba de rir com a fala, ele assina embaixo do preconceito da comédia. Eu não preciso ser mexicana pra me ofender, porque sei bem que o “não beba a água” não se restringe ao México. E sei o que esse tipo de atitude representa.
Ontem procurei na internet alguma manifestação de repúdio do México contra o filme Sex and the City, mas não encontrei nadinha. Felizmente, a Denise, do brilhante Síndrome de Estocolmo, encontrou por mim. Tá aqui (em espanhol). Leia também a resposta dela às críticas que recebeu por ter, dãã, criticado a comédia romântica da vez.