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Por Saul Leblon, no site Carta Maior:
O jogo de 2014: democracia social X oligarquia argentária. O PT topa?
A prostração política e ideológica nas fileiras progressistas é talvez o mais grave desafio à reeleição da Presidenta Dilma.
Sem superá-lo - ao menos mitigá-lo - fica difícil esperar da sociedade a compreensão mais que nunca necessária sobre o que está em jogo em outubro de 2014.
A dissipação que reduz tudo a uma grande noite dos gatos pardos é a lenha na fornalha do conservadorismo. A isso se dedica em tempo integral a emissão conservadora.
Para reagir é preciso desassombro na identificação dos problemas.
O primeiro passo é admitir os erros de avaliação estratégica na origem do desalento.
Não se trata do varejo das perdas e danos intrínsecos a um governo de coalizão, determinado pela correlação de forças existente na sociedade e no cenário internacional.
Esse ônus sempre existiu, desde que o PT optou por ser uma força eleitoralmente competitiva.
O partido, todavia, tinha - e tem - a obrigação histórica de manter viva a tensão política e ideológica decorrente das suas escolhas.
O conflito entre o respeito ao jogo institucional e o compromisso com a construção de uma democracia social no país tornou-se endógeno ao PT.
Lula personifica essa contradição que manteve viva, transparente, em seus dois governos.
A superlativa presença do seu discurso na cena política era a evidencia mais crua de uma tentativa de negociar e repactuar , diariamente quase, o equilíbrio entre os dois polos.
O que se fez nos últimos anos, em certa medida, foi a tentativa de hibernar essa tensão insolúvel nos marcos da democracia representativa brasileira.
Em vez de expressá-la, adotou-se a aposta economicista , ancorada na suposta repetição de um desempenho de indicadores convencionais semelhantes ao do ciclo Lula.
A premissa mostrou-se incompatível com a transição de ciclo em curso no capitalismo mundial, refletida internamente na anemia do investimento , da exportação, da receita fiscal e da renda.
O conjunto trouxe o conflito redistributivo - despolitizado pelo governo - para o campo desgastante do terrorismo inflacionário, a ser combatido com juros siderais, segundo o mantra argentário.
Expectativas expansionistas imaterializáveis fizeram o resto, contratando frustrações que o conservadorismo agora se esmera em hipertrofiar, salgando o preço da luta eleitoral.
Hoje parece claro que a superação da ênfase no consumo (correta durante a crise), rumo a um novo ciclo de investimento, deveria ter sido precedida da obsessiva construção de linhas de passagem para impulsionar um salto da passividade política ao discernimento engajado nas escolhas do desenvolvimento.
Não foi feito.
A evidência mais crua dessa omissão, que deu ao conservadorismo a hegemonia narrativa do processo, foi o fato de o PT, seus principais líderes e dirigentes, ademais de o governo, terem subestimado a importância de uma regulamentação da mídia para, ao menos, criar um contraponto de pluralidade ao monólogo plutocrático.
O conjunto obriga agora o campo progressista a disputar a narrativa econômica nos termos insolúveis impostos pela emissão conservadora, a saber: descontrole inflacionário versus juros argentários.
Mais que isso.
A avalanche ofuscou o discernimento ideológico dos quadros progressistas mais avançados, rebaixando a sua percepção sobre a verdadeira natureza do embate histórico em curso no país.
O nome do jogo não é inflação versus arrocho, mas democracia social negociada versus anomia conservadora.
Ou alguém acredita que um governo Aécio Neves - ou Campos/Marina, tanto faz, teria outro lubrificante para sua receita ortodoxa que não um vergalhão de desemprego e esmagamento do poder aquisitivo do mercado de massa criado nos últimos anos?
Por força dessa omissão, o saldo desses 12 anos de conflito – objetivamente favorável à sociedade brasileira como o demonstram as estatísticas sociais-- vem sendo pulverizado entre as pás de um moinho satânico.
Interesses rentistas insaciáveis , uma coalizão conservadora desprovida de proposta defensável em palanque e uma guerra aberta midiática unem-se na determinação de sepultar, de uma vez por todas, o último obstáculo eleitoral à hegemonia absoluta dos mercados no país: o PT.
O tempo e o terreno perdidos nesse rally têm uma chance de ser parcialmente recuperados na campanha eleitoral de 2014.
Desde que se dê a ela a destinação correta que não poder ser confundida com a mera formalidade publicitária.
Trata-se de um momento condensado da luta política.
Assim entendido pode corrigir o passado com a pactuação de um futuro distinto do mero compromisso com a inércia do presente.
O divisor de águas consiste em devolver ao programa de 2014 uma dimensão crucial do desenvolvimento esmaecida nos últimos anos: a sua determinação política.
Não se pode mais atribuir à economia aquilo que compete à correlação de forças decidir.
É preciso trazer para o embate eleitoral a verdade nua e crua temida pelo conservadorismo: a repactuação negociada de um novo ciclo de investimento com a distribuição da riqueza é indissociável de um avanço da democracia.
O resto é arrocho.
E há requisitos incontornáveis para que não seja arrocho.
O principal deles é equilibrar a presença do grande capital na mídia e no sistema político.
A regulação da estrutura de comunicação audiovisual e a reforma do sistema político, subtraindo de ambos a supremacia do dinheiro sobre a pluralidade, constitui o grande requisito à retomada do investimento, do crescimento e da reordenação do futuro.
Nada disso é estranho à história do PT e à trajetória do campo progressista brasileiro.
Essa aderência –repita-se, com as contradições e conflitos que lhe são intrínsecos— precisa retomar o espaço nobre no discurso e na prática petista.
Ignorar a centralidade da democracia na campanha de 2014 pode transformá-la num gigantesco buraco negro da esperança progressista.
A democracia, como diz o historiador e ensaísta italiano Luciano Canfora, em entrevista recente no El País, não consiste no governo da maioria simplesmente por dar à contagem dos votos a sua representação política.
Ela o será na medida em que exista um Estado social diante do qual quem não detém a riqueza na sociedade, ainda assim, tem peso efetivo na vida política e instrumentos para exercê-lo.
Ainda que ziguezagueante e contraditório quem guarda coerência com essa agenda no Brasil é o campo progressista liderado pelo PT. Mas não raro empurrado por outros partidos e movimentos sociais, ademais de arguido pela crítica de intelectuais que se colocam à esquerda nesse espectro político.
A essência do conflito com o qual o PT fundiu o seu destino consiste –para emprestar mais uma vez as lições de Canfora-- em entender a democracia como um experimento político que, sem expropriar radicalmente a riqueza, assume como imperativo coloca-la a serviço da finalidade social do desenvolvimento.
Até onde essa contradição poderá evoluir nos marcos de um sistema produtor de mercadoria não é um problema meramente teórico, mas de prática política.
É também, em essência, a grande esfinge que habita a alma do PT.
Mas que ainda não o devorou.
Ao contrário.
Os últimos 12 anos deram ao partido e a seus militantes um conjunto objetivo de conquistas a defender contra a regressividade intrínseca ao projeto conservador para o Brasil.
Mas revelaram, também, desafios incontornáveis a encarar.
O principal deles é a rebelião rentista que insiste em subordinar a democracia aos seus desígnios, amputando sua capacidade de dar à riqueza uma finalidade social.
O economista Thomas Piketty, professor da Escola de economia de Paris, autor do elogiado ‘O capital no século XXI’ (leia a série de resenhas sobre o livro nesta pág), demonstra como a regressividade patrimonialista, inerente à hegemonia financeira em nosso tempo, está promovendo uma mutação na sociedade capitalista.
Ela conduz a uma desigualdade extremada, que aprofunda e perpetua as diferenças de berço, caminhando exatamente no sentido de destruir o papel social da democracia, pelo qual lutam as forças progressistas de todo o mundo. Sendo o PT uma de suas expressões relevantes.
Piketty mediu a regressão em marcha calibrada pela supremacia financeira nas últimas décadas.
Nos EUA e na Inglaterra, por exemplo, antes da Primeira Guerra Mundial, o 1% mais rico detinha 20% da renda nacional. Por volta de 1950, essa proporção cairia a menos da metade. De 1980 para cá a parcela reservada ao 1% disparou de novo.
Nos Estados Unidos ela já retornou ao ponto em que estava um século atrás.
É como se o ciclo neoliberal tivesse varrido do mapa histórico, de fato, a revolução russa e a construção do Estado do Bem Estar Social dela decorrente.
Daí para configurar aquilo que Piketty denomina como a consolidação de uma desigualdade de castas hereditárias, basta acrescentar o declínio de bandeiras republicanas como a taxação da herança e dos lucros superlativos do rentismo.
As conquistas sociais e o crescimento do emprego no Brasil nos últimos anos, na contramão da restauração neoliberal pós-crise, não excluem o país do risco de se tornar também uma correia de transmissão da perversidade hereditária --quase biológica.
A causa apontada por Piketty nas economias ricas está presente no capitalismo brasileiro.
Ganhos sempre superiores ao crescimento médio da economia, deslocam para o capital a juros –o rentismo-- fatias progressivamente mais gordas da riqueza social.
A dilatação da desigualdade daí decorrente, não sendo corrigida por políticas públicas de taxação de lucros e herança, semeia os alicerces de uma sociedade oligárquica ordenada pela posse original do patrimônio, transmitido de pai para filho.
Uma rápida comparação entre a série histórica do PIB e a evolução da taxa de juro no país (fontes: IBGE, FGV, Ministério da Fazenda e BC) mostra que no período entre 1995 e 2012, ou seja, por 17 anos, a taxa de juro real praticada no Brasil só ficou abaixo da variação do produto uma única vez, em 2010 (6,2% e 7,5%, respectivamente).
No segundo governo FHC, para um crescimento médio do PIB da ordem de 2%, a taxa de juro real ficou em 18,5%.
No segundo governo Lula, para um PIB médio de 4,5% a taxa de juro real foi da ordem de 11,7%.
Nos três primeiros anos de Dilma (2010-2013), o PIB médio foi da ordem de 2%.
A taxa de juro real foi caiu para 3,3%.
O estreitamento progressivo da diferença explica uma fatia expressiva do jogral do Brasil aos cacos recitado incansavelmente pela colunismo isento, a serviço do dinheiro grosso.
A rebelião contra a ‘Dilma intervencionista’, nesse sentido, é a rebelião da república rentista e de seus porta-vozes de orelhada ou holerite contra a redução real da Selic.
Ademais de corroer as pontes que levam a uma convergência da riqueza, o interdito preserva um confortável bunker de rentabilidade líquida para o capital a juro, imiscível com as urgências de investimento do país.
O conjunto remete à esfinge que povoa a alma do PT : o dinheiro não pode determinar o limite da democracia que, ao contrário, deve subordina-lo aos interesses da sociedade.
A palavra de ordem do conservadorismo em 2014 é deixar ao mercado o escrutínio desse conflito.
A campanha progressista, ao contrário, deve repactuar com o eleitor as linhas de passagem –que incluem sacrifícios, prazos e avanços, mas que deem à democracia a hegemonia do processo.
Foi abraçado a essa bandeira que o PT nasceu e se tornou a principal força política do país.
Deve agora reafirmar ao eleitor a sua capacidade de aprofundar esse compromisso na direção do país por mais quatro anos.
Em última instância, significa fazer do embate entre democracia social versus oligarquia argentária o grande duelo da eleição de 2014. E do futuro brasileiro.
O PT topa?
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