O naufrágio do Estado mexicano
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O naufrágio do Estado mexicano


Por Rafael Barajas e Pedro Miguel, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:


Quando, num país, um grupo de policiais detém 43 estudantes, desaparece com eles e os envia a um grupo criminoso organizado ligado às drogas para que este, à guisa de “lição”, os assassine, uma constatação se impõe: o Estado se transformou em narco-Estado, um sistema em que o crime organizado e o poder político são a partir de agora indissociáveis.

Quando essas mesmas forças da ordem metralham estudantes, matando seis e ferindo gravemente outros seis; quando elas se apoderam de um desses jovens, lhe arrancam a pele do rosto, tiram os olhos e o deixam estendido na rua para que seus colegas o vejam, outra evidência aparece: esse narco-Estado pratica uma forma de terrorismo.

Tudo isso aconteceu no sul do México, em Iguala, terceira cidade do estado de Guerrero. Ali, a polícia agrediu brutalmente um grupo de estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa e, a se acreditar nos testemunhos atualmente disponíveis, os conduziu para a morte. José Luis Abarca, prefeito de Iguala, e sua mulher, María de Los Ángeles (ligados a um cartel da região), suspeitos de serem os instigadores da operação, foram presos na terça-feira, 4 de novembro.

As escolas normais rurais, fundadas há oito décadas, têm por objetivo difundir um ensino de qualidade no campo oferecendo a jovens educadores, oriundos do meio camponês, a possibilidade de melhorar suas condições de vida. Esse duplo objetivo, herdado da Revolução Mexicana (1910-1917), enfrenta com força total o modelo econômico neoliberal, introduzido no país nos anos 1980. Segundo a lógica a ele subjacente, a educação pública freia o desenvolvimento do mercado do ensino, enquanto o campo abriga intoleráveis maus odores do passado (comunidades indígenas ou pequenos agricultores que entravam a expansão da agroindústria da exportação).

Eis o motivo pelo qual as escolas normais rurais que sobrevivem no México, quinze ao todo, estão constantemente expostas à hostilidade, o que pode ser medido ao mesmo tempo pelos cortes orçamentários que sofrem e pela maneira como são mostradas pelos meios de comunicação e pelos dirigentes políticos: “viveiros de guerrilheiros”, segundo a ex-secretária-geral do Partido Revolucionário Institucional (PRI) Elba Esther Gordillo;1 refúgios “de gente delinquente e que não serve para nada”, em um debate na rede Televisa (1o dez. 2012); e, nos últimos tempos, “tocas do crime organizado”, para o jornalista Ricardo Alemán (El Universal, 7 out. 2014).

Tal como seus colegas das outras escolas normais rurais, os estudantes de Ayotzinapa lutam para assegurar a sobrevivência de sua instituição. Eles completam os magros subsídios do Estado – o equivalente a R$ 91 milhões anuais para cobrir os custos ligados a formação, alojamento e cobertura médica de pouco mais de quinhentos estudantes, quarenta formadores e seis empregados da administração – por meio de coletas de fundos. Em 28 de setembro de 2014, os estudantes de Ayotzinapa tinham ido a Iguala precisamente para realizar uma dessas coletas, quando foram sequestrados.

Eles teriam sido atacados com a fúria que os cartéis utilizam em relação a seus inimigos. Uma testemunha ocular – um policial – revelou que, apesar de feridos, os 43 estudantes teriam efetuado longos trajetos a pé, para, no final das contas, serem espancados, humilhados, regados com diesel e queimados vivos. Os corpos teriam se consumido durante 14 horas, até que só restassem cinzas, pequenas pontas de ossos e dentes.

Ainda que nós, mexicanos, estejamos habituados a informações chocantes (decapitações, execuções, torturas etc.), a indignação despertada por essa história não diminui. A certeza de que ela revela uma forma de terrorismo que emana de um poder no qual se misturam cartéis e líderes políticos coloca questões angustiantes: qual é a extensão do narco-Estado no México? Qual é a verdadeira amplitude da repressão política que ele coloca em ação?

O narco-Estado levanta um problema estrutural: o dinheiro da droga irriga a economia mexicana. Um estudo norte-americano e mexicano sobre os bens ilícitos, publicado em 2010, estima que a cada ano os cartéis transfiram entre US$ 19 bilhões e US$ 29 bilhões dos Estados Unidos para o México.2 Segundo a agência de segurança Kroll, essa cifra oscilaria entre US$ 25 bilhões e US$ 40 bilhões.3 O narcotráfico constituiria então a principal fonte de divisas do país, à frente das exportações de petróleo (US$ 25 bilhões) e das remessas de dinheiro de residentes no estrangeiro (também US$ 25 bilhões). Esse maná alimenta diretamente o sistema financeiro, coluna vertebral do modelo neoliberal. Secar a fonte conduziria ao colapso econômico do país. Em outras palavras, o México repousa sobre uma narcoeconomia, a qual não pode se manter sem a pilotagem adaptada de um narco-Estado.

Traficantes em campanha

Essa aliança entre o mundo político e o da droga se estende por todo o território. Em regiões inteiras – os estados de Sinaloa, Chihuahua, Michoacán (leia a reportagem na pág. 17), Guerrero, Tamaulipas, Veracruz e Oaxaca –, os cartéis fazem a lei. Eles impõem funcionários públicos, chefes de polícia, negociam com governadores. Pouco importa a filiação política dos representantes do Estado, a autoridade permanece nas mãos do crime organizado. Há algumas semanas, um vídeo divulgado pelo cartel dos Cavalheiros Templários mostrava Ricardo Vallejo Mora, filho do ex-governador de Michoacán, conversando tranquilamente com Servando Gómez Martínez, conhecido como “La Tuta”, o chefão da organização criminosa que grassa naquele estado.4 Nessas regiões, o crime reclama suas cotas, extorque, sequestra, estupra e mata em total impunidade. Os cidadãos vivem um inferno em comparação com o qual as alucinações de Hieronymus Bosch se parecem com desenhos para crianças. Em certos estados, surgiram milícias cidadãs de autodefesa.

Hoje existe uma grande quantidade de indicadores que demonstra que o narco-Estado gangrena as altas esferas da classe política. Nenhum partido nem região escapam a ele, sobretudo os mais importantes: o PRI, no poder, o Partido de Ação Nacionalista (PAN) e o Partido da Revolução Democrática (PRD). Os narcotraficantes não podem agir sem a cooperação dos homens políticos e dos funcionários públicos de todos os níveis. Durante as eleições, o dinheiro desempenha o papel de grande eleitor, além de as campanhas oferecerem um meio eficaz de lavar capital.

O caso do presidente Enrique Peña Nieto, do PRI (no poder desde 2012), preocupa particularmente. Nenhuma prova direta permite estabelecer seus laços com o crime organizado. No entanto, durante sua campanha, uma das mais onerosas da história mexicana, uma parte da imprensa revelou operações financeiras nebulosas, que se elevavam a milhões de dólares.5 O escândalo fez grande barulho no México, mas a “comunidade internacional” manteve o silêncio. Não se dispõe de instrumentos que permitam medir a totalidade dos custos gerados por Peña Nieto para ganhar a presidência em 2012. Em 5 de novembro de 2014, porém, uma comissão legislativa estabeleceu que o PRI tinha gasto mais de 4,5 bilhões de pesos (cerca de R$ 850 milhões, treze vezes o teto fixado por lei).6 A comissão não pôde investigar um bom número de operações ocultas, com as quais a soma com certeza teria sido superior. Oficialmente, ninguém sabe de onde provém esse dinheiro, o que preocupa num país gangrenado pelo narcotráfico. Especialmente porque, nos diversos territórios dominados pelo crime organizado, os cartéis locais apoiaram ativamente o PRI.7

Durante sua campanha, Peña Nieto prometeu lutar contra o narcotráfico, assegurando que os primeiros resultados se fariam sentir ao final de um ano. Isso foi há três anos. Muitos, entre os eleitores, esperavam que a política do PRI fosse mais eficaz que a de seu predecessor, mas o plano de segurança de Peña Nieto quase não difere do de Felipe Calderón: é Washington que impõe sua própria doutrina em termos de segurança. E os assassinatos continuam. Órgão do governo federal, o Sistema Nacional de Saúde Pública (SNSP) registrou, ao longo dos vinte primeiros meses do governo de Peña Nieto, 57.899 inquéritos preliminares sobre homicídio doloso.8

A violência perpetrada pelo crime organizado tende a relegar a segundo plano aquela exercida pelo Estado, que não é negligenciável. O governo afirma que Ayotzinapa é um caso isolado. Os mexicanos têm boas razões para pensar que não é, de forma alguma.

Quando era governador do estado do México, Peña Nieto ordenou, em 2006, a repressão dos habitantes de San Salvador Atenco, que havia anos se opunham à desapropriação de suas terras para a construção de um aeroporto. Durante essa operação, as forças da ordem cometeram inúmeras violações dos direitos humanos ainda impunes, notadamente múltiplas agressões sexuais contra as detentas.

Desde que Peña Nieto assumiu o poder, as prisões estão repletas de pessoas cujo único delito foi ter lutado por seus direitos, suas terras, seu patrimônio, e defendido sua família contra as agressões do crime organizado. Em agosto de 2014, o comitê Nestora Libre, uma associação de defesa de presos políticos, assinalou que desde dezembro de 2014 ao menos 350 pessoas tinham sido presas por motivos políticos.9 Em Michoacán, foi preso o doutor José Manuel Mireles, fundador de uma milícia de autodefesa contra o crime organizado, e 328 membros de seu grupo. No estado de Guerrero, a líder indigenista Nestora Salgado, treze policiais comunitários e quatro líderes populares que se opuseram à construção da barragem de La Parota foram colocados atrás das grades. Em Puebla, 33 pessoas apodrecem na prisão por terem feito oposição à construção de uma central termelétrica excessivamente poluidora. Na Cidade do México, em Quintana Roo, em Chiapas e em muitos outros estados, não se contam mais os prisioneiros políticos. No estado de Sonora e em Chiapas, cidadãos que se opunham à privatização da água foram encarcerados, tal como aqueles que pediam fertilizantes.

Um caso isolado?

Desde o início do mandato de Peña Nieto, as forças da ordem recorreram a práticas típicas da “guerra suja”, a repressão política na América Latina dos anos 1960 a 1980. Nepomuceno Moreno, membro do Movimento pela Paz com Justiça e Dignidade, foi torturado e assassinado no estado de Sonora quando participava de uma caravana pela paz. Em Chihuahua, sicários assassinaram Ismael Solorio e Manuelita Solis, que defendiam os recursos hidráulicos de sua região atormentada pelo apetite das companhias mineiras canadenses. No estado de Sinaloa, assassinaram Atilano Román, dirigente de um movimento de pessoas deslocadas pela construção da barragem Picachos. A lista é interminável...

As atrocidades cometidas em Iguala estimularam a cólera social. Esta se manifesta agora no seio de setores da população tradicionalmente apáticos e ameaça de maneira inédita a sobrevivência do regime. Nenhuma das armas tradicionais do arsenal do PRI –cooptação, midiatização, infiltração, provocação, difamação – conseguiu contê-la. Ao contrário, as tentativas de comprar o silêncio das famílias, os esboços de repressão, as incitações a atos de violência,10 a campanha realizada contra Andrés Manuel López Obrador, principal dirigente da oposição de esquerda, com o objetivo de lhe atribuir a responsabilidade pelas violências perpetradas contra os estudantes, e o coro dos meios de comunicação dominantes insistindo em defender a figura do presidente estimularam a cólera da população e exacerbaram seu desejo de mudança.

Em 10 de novembro, o movimento criado em torno dos estudantes e de suas famílias levou a uma ação sem precedentes: o bloqueio, durante mais de três horas, do aeroporto internacional de Acapulco (no estado de Guerrero), destino turístico tradicional do país. Tudo leva a pensar que outras ações vão se suceder a essa, tendo como alvo outros aeroportos ou as autoestradas mais importantes da região.

O poder insiste em afirmar que Ayotzinapa é “um caso isolado”. O procurador-geral da República, Jesús Murillo Karam, repetiu isso no dia 7 de novembro, por ocasião de uma coletiva de imprensa, quando lhe perguntaram se ele considerava que os fatos significavam um crime de Estado. “Iguala não é o Estado”, respondeu. De fato, Iguala não é o Estado. Mas o que aconteceu na cidade de Guerrero revela aquilo que ele se tornou.

Notas:

1-  La Jornada, México, 6 ago. 2010.

2- John T. Morton, “Binational study of illicit goods” [Estudo binacional de mercadorias ilícitas], Departamento Americano de Segurança dos Sem-Teto, Washington, 3 jun. 2010.

3-  Citado por Roberto González Amador em “Mueve el narco 40 mil mdd en México” [O narcotráfico movimenta US$ 40 bilhões no México], La Jornada, 1o out. 2009.

4-  “La cumbre Vallejo-La Tuta” [A cúpula Vallejo-La Tuta]. Disponível em: www.youtube.com.

5-  Roberto González Amador e Gustavo Castillo García, “Indicios de lavado de dinero con las tarjetas de Monex” [Indícios de lavagem de dinheiro com os cartões da Monex], La Jornada, 12 jul. 2012.

6-  “Caso Monex: PRI gastó más de 4 mil 500 millones de pesos en campaña de 2012”, [Caso Monex: o PRI gastou mais de 4,5 milhões de pesos na campanha de 2012], Aristegui Noticias, México, 12 mar. 2012.

7- Cf., entre outros, “Denuncian amenazas del narco en Chihuahua para votar por el PRI” [Denúncias de ameaças do narcotráfico em Chihuahua para votar pelo PRI], Proceso, México, 4 jul. 2012.

8-  “Los muertos con Peña llegan a 57 mil 899 en 20 meses; son 14 mil 205 más que en el mismo periodo de Calderón” [Os mortos com Peña chegam a 57.899 em vinte meses; são 14.205 a mais que no mesmo período de Calderón], 25 ago. 2014. Disponível em: www.sinembargo.mx.

9- Verónica Macías, “Denuncian más de 300 presos políticos en gobierno de Peña” [Denúncia sobre mais de trezentos presos políticos no governo Peña], El Economista, México, 20 ago. 2014.

10- Sábado, 8 de novembro, um grupo de supostos “manifestantes”, visivelmente protegidos pela polícia, tentou colocar fogo no Palácio Nacional, sede do poder executivo federal no México.




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