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O neoliberal Bolsa Família - SUELY CALDAS
O Estado de S.Paulo - 03/11
A História se encarrega de juntar ideias e fatos, fazer justiça, costurar acontecimentos e narrar os fatos reais que a política tentou embaralhar, falsear e, por vezes, negar. Só que as duas - a História e a política - protagonizam tempos diferentes. Porque trabalha com o momento presente, a política não tem compromisso com a verdade e se aproveita do mais oportunista apelo do momento. A História trabalha com tempo mais longo, seu papel é recolocar em seus lugares ideias e fatos que a política falseou no passado e contar como se passou a verdade.
Entre o que o Partido dos Trabalhadores (PT) pregou antes e praticou depois que assumiu o poder, passou pouco mais de uma década. Tempo curto, do ponto de vista da História, mas a metamorfose foi tão rápida, flagrante e abrupta que precipitou a percepção da verdade.
O fato mais conhecido desse enredo foi a súbita apropriação da política macroeconômica de Fernando Henrique Cardoso (excomungada e rotulada pelo PT de neoliberal) pelo ex-presidente Lula desde o primeiro dia de seu governo, em 2003. Mas há outros, e vou tratar aqui de três: a privatização, a autonomia do Banco Central (BC) e o programa Bolsa Família. Os três foram gerados em ventres liberais, experimentados e aprovados mundo afora e viraram políticas universais de Estado em países democráticos.
Começando pelo programa Bolsa Família, que acaba de completar dez anos e foi comemorado pelo PT, por Lula e Dilma Rousseff com festa eleitoral. Quem ouve Lula falar imagina que partiram de sua cabeça a concepção e a criação do programa. E com a sua marca: nunca antes experimentado no mundo. O senador petista Eduardo Suplicy conhece e poderia contar ao amigo Lula sobre sua origem e autoria.
Nada nasce de um dia para o outro. A ideia de criar programas de transferência de renda nasceu nos anos 1960/1970 e seu autor foi o economista norte-americano Milton Friedman, o mais talentoso formulador do liberalismo econômico do século passado, criador da teoria monetarista e responsável pelo ideário liberal dos Chicago Boys - referência pejorativa da esquerda da época aos alunos seguidores de Friedman na Universidade de Chicago, onde ele lecionou por 30 anos. A partir dos anos 80, o Banco Mundial passou a recomendar programas de transferência de renda aos países pobres e em desenvolvimento, entre eles o Brasil.
Por aqui, os conselhos do Banco Mundial foram rechaçados pela esquerda (inclusive o PT), tratados como maldição. "Não se combate pobreza com esmola", indignavam-se os petistas. Contra essa maré sempre remou o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), que desde os anos 80 defendia um programa de renda mínima universal - pobres e não pobres - e citava o liberal Milton Friedman em seus argumentos. Coerente, Suplicy apresentou o projeto ao Senado em 1991, que foi sancionado por Lula em 2004, mas nunca executado. Também em 1991 o economista da PUC-Rio José Marcio Camargo escreveu o texto Pobreza e garantia de renda mínima, apoiando o projeto de Suplicy, mas fechando o foco só nos mais pobres e acrescentando duas sugestões: excluir os idosos e restringir o acesso às famílias com crianças matriculadas na escola.
A ideia foi ganhando forma no início dos anos 90, em discussões de um grupo de economistas do Rio de Janeiro, entre eles Ricardo Paes de Barros, André Urani, Edward Amadeo e Ricardo Henriques (que no governo Lula ajudou a formatar o cadastro único), além de Camargo. Curiosamente, coube a um tucano (o prefeito de Campinas José Roberto Magalhães Teixeira) e a um petista (o governador de Brasília Cristovam Buarque, hoje no PDT) a primeira iniciativa - em 1995 - de criar um programa de transferência de renda no Brasil, que recebeu o nome de Bolsa Escola.
Em alcance nacional, foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso quem primeiro implantou o programa - também com o nome de Bolsa Escola -, em 1998, focalizando nos mais pobres e criando duas exigências para as famílias terem acesso: comprovada frequência na escola e carteira de vacinação atualizada da criança. Na época, o PT foi contra e chamava o programa de "Bolsa Esmola". Em sua gestão, FHC também criou outros programas sociais, entre eles o Vale Gás e o Bolsa Alimentação.
O mérito de Lula foi unificar cadastros e concentrar todos os programas sociais de FHC em um único, que chamou de Bolsa Família. Lula e o PT não criaram nada e ainda abandonaram o Fome Zero - que conceberam para concorrer com o Bolsa Escola - e se apropriaram do programa que combateram em 1998. O mérito maior de Lula, no entanto, foi apostar no êxito do Bolsa Família como meio para reduzir a pobreza. Nos últimos dez anos, o número de famílias beneficiadas mais do que dobrou, saltando de 5 milhões, do fim do mandato de FHC, para 13,8 milhões, atualmente. E ajudou muito a tirar milhões de brasileiros da extrema pobreza e outros milhões a ascenderem à classe média.
Ao criar agora o Brasil sem Miséria, a meta de Dilma Rousseff é erradicar a miséria no País. A mesma meta que tinha o ultraliberal Milton Friedman quando concebeu os programas de transferência de renda há cinco décadas. É assim a História.
Privatização e BC. Diferentemente do Bolsa Família, a adesão de Lula, Dilma e do PT à privatização e à autonomia do Banco Central é envergonhada e incompleta. Menos ideológico do que Dilma, Lula respeitou o acordo feito com Henrique Meirelles e lhe deu autonomia de decisão no BC em seus oito anos de gestão. Mas na semana passada fez coro ao PT manifestando-se contra a autonomia em lei - ou porque não quer abrir mão do poder ou porque imagina usar isso como bandeira eleitoral.
Mais concentradora e ideológica, Dilma deu sucessivas mostras de que não pretende abrir mão da palavra final em política monetária. E, além de não ajudar, exagerando nos gastos (o déficit fiscal de setembro ultrapassou R$ 10 bilhões), deixa para a direção do Banco Central a solitária e inglória tarefa de controlar a inflação sem liberdade para manejar suas armas.
Quanto à privatização, os dois resistiram o quanto puderam. Lula por oportunismo político-eleitoral, Dilma por convicção ideológica. Mas ela foi obrigada a recuar por motivo simples e pragmático: precisa do capital privado para estimular crescimento e desenvolvimento.
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