Por Cynara Menezes, no blog Socialista Morena:El Mercurio Miente. A faixa pendurada pelos estudantes da Universidade do Chile no dia 11 de agosto de 1967, é o equivalente chileno a “O povo não é bobo, abaixo a rede Globo”. Assim como acontece aqui, a frase vem à baila toda vez que se denuncia o conglomerado midiático número 1 do país pela manipulação da informação. Naquele ano, o centenário jornal da família Edwards assumiria uma posição radicalmente contra a possibilidade de reformas no país. Seis anos depois, conspiraria para derrubar o presidente eleito Salvador Allende.
Em editorial sobre a greve dos estudantes, El Mercurio apontou “inspiração comunista” no movimento estudantil, daí a faixa; as passeatas que tomavam o Chile pedindo reforma agrária eram obra de “agitadores”. Desde o primeiro momento, o jornal se posicionou abertamente contra a virtual eleição do senador de esquerda Salvador Allende à presidência. Quando Allende se elegeu em 1970, saiu-se com a manchete: “Maioria relativa de Allende: 1.075.616 votos contra”. Fosse hoje em dia, diríamos que tucanou a vitória da Unidade Popular.
“El Mercurio entendeu que era o fim da sociedade oligárquica chilena. Isto o levou a ser um jornal não só anti-Allende mas anti-democrático. Um jornal golpista. E uma vez que justificou e promoveu o golpe, teve que defender toda a violação de Direitos Humanos que se seguiu”, diz o sociólogo e cientista político chileno Manuel Antonio Garretón no documentário El Diario de Agustin.
Dirigido por Ignacio Agüero em 2008, o filme narra o papel sujo que teve El Mercurio como partícipe do golpe de Estado que derrubou Salvador Allende há exatos 40 anos, completados hoje, 11 de setembro. A adesão descarada e a cumplicidade integral do jornal fariam corar até mesmo os donos da mídia brasileira. Aqui, pelo menos, houve alguma reação, por menor que tenha sido. No Chile, os jornais dos Edwards foram os únicos poupados pela ditadura de Pinochet do empastelamento. “Menos mal que escapamos, não é? Não vou dizer que a suspensão das atividades da concorrência foi uma notícia ruim”, diz cinicamente no documentário um ex-diretor de El Mercurio.
O golpe militar no Chile e o grupo El Mercurio foram irmãos siameses. No dia seguinte à eleição de Allende, o dono do jornal, Agustín Edwards (são váriosAgustín consecutivos à frente do diário), viajaria a Washington, nos EUA, onde teria reuniões pessoais com o secretário de Estado, Henry Kissinger, e com o diretor da CIA. Hoje se sabe, com base em documentos, que o motivo dos encontros já era como evitar que o novo presidente tomasse posse. Falou-se inclusive em “opção militar”. Nos anos seguintes, a organização de mídia de Edwards receberia 2 milhões de dólares da CIA –em torno de 11 milhões de dólares em valores de 2008– como parte da estratégia golpista norte-americana contra os governos de esquerda na América do Sul.
Allende enfim tomou posse e El Mercurio, La Segunda e La Tercera, os jornais do grupo, começaram a fazer seu papel: manchetes e mais manchetes contra o governo. Allende tinha a noção exata do inimigo que enfrentava. “Se deforma, se mente, se calunia, se tergiversa. Os meios de comunicação com que contam (a direita) são poderosos, jornalistas vinculados a interesses estrangeiros e a grandes interesses nacionais. Não só não reconhecem como deformam nossas iniciativas”, disse o presidente na conversa que teve com Fidel Castro em 1971.
A aliança do jornal com a direita golpista e com os EUA culmina no enredo que conhecemos: o bombardeio do palácio de la Moneda e a morte do presidente, que ganharia uma chamada lacônica na primeira página, abaixo da notícia sobre a tomada do poder pela junta militar: “Morreu Allende”. Nos anos seguintes ao golpe, os anúncios de “procura-se” dos inimigos de Pinochet eram publicados com desfaçatez em primeira página por El Mercurio, ao lado da manchete do dia. O documentário relata episódios escabrosos em que o jornal foi utilizado pela ditadura para dar veracidade às farsas governamentais para encobrir a prisão, tortura e morte de oposicionistas. Somente na década de 1990 o diário deixaria de usar a expressão “suposto” quando se referia às vítimas de Pinochet.
Em uma das muitas histórias mal contadas do período, 119 desaparecidos aparecem mortos na Argentina. A notícia sai primeiro em um jornal de Curitiba e em uma revista portenha. Nas páginas de El Mercurio, se transforma em “executados pelos próprios camaradas”. O jornal La Segunda faz pior e celebra a morte dos “terroristas” em primeira página: “Exterminados como ratos”.
Em 1976, os jornais da família Edwards noticiam o assassinato de uma militante comunista, sob tortura, como se fosse “crime passional”, legitimando a versão encenada pelo governo. O bom trabalho seria seguidamente prestigiado por Pinochet com sua presença nas festas de aniversário de El Mercurio e com frases como “El Mercurio, trincheira contra o totalitarismo” estampadas, é claro, em manchetes do próprio jornal.
É um filme para se assistir com o estômago embrulhado, principalmente quando se lembra que, em todos estes anos, a SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa) jamais foi capaz de condenar El Mercurio, assim como tampouco foi capaz de condenar qualquer jornal brasileiro por ter apoiado a ditadura. A mesma SIP que volta e meia é utilizada pela nossa mídia para criticar Cristina Kirchner, Evo Morales ou Hugo Chávez como “ditadores”. Imaginem se um governante chileno resolvesse fazer uma Lei de Meios no país e acabar com o poderio dos Edwards, donos de 20 jornais regionais e três nacionais. Claro, seria imediatamente acusado de “atentar contra a liberdade de expressão”. Mas e acobertar assassinatos, é o quê?
Foram 2279 mortos e 28l456 as vítimas de prisão e tortura durante o bárbaro regime de Pinochet. Quando essa cifra veio à tona, em 2004, o presidente Ricardo Lagos perguntou: “Como pudemos viver 30 anos de silêncio?” Uma vergonha para a imprensa e os jornalistas do país. Ao se associar a Pinochet, o grupo de comunicação mais poderoso do Chile se tornou cúmplice de cada uma dessas violações dos Direitos Humanos. No 40º aniversário do golpe de Estado no Chile, porém, El Mercurio nem sequer deu mostras de arrependimento em suas páginas. É até melhor assim. Quem precisa de cinismo uma hora dessas?
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