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Por Moara Correa e Bruna Rocha, no jornal Brasil de Fato:Não é necessário assistir à minissérie de Miguel Falabella para entender o seu papel semântico na sociedade brasileira, sobretudo em um momento como este, onde o povo negro começa a acessar políticas direcionadas à Reparação Racial no Estado. Aliás, o povo negro e, sobretudo, nós mulheres negras não merecemos passar por isso. O Coletivo Nacional de Juventude Negra – ENEGRECER e a Marcha Mundial das Mulheres vêm aqui denunciar esta produção em específico e toda a histórica postura racista dos meios de comunicação de massa do Brasil.
Devemos ressaltar que este não é um debate MORAL. Mulheres negras têm o direito de exercer sua sexualidade e podem existir produções que abordem este tema, assim como o tema da afetividade. Quando se tratam de mulheres negras, inclusive, estes debates ficam muito borrados. Acontece que existem formas e formas de trabalhar com este tema, e aqui repudiamos a forma como é construído o conceito de “Sexo e as Negas”.
Vamos começar pelo título: “As negas” é uma expressão que soa como as falas dos senhores referentes às escravas que estupravam diariamente – fato histórico responsável pela vangloriada miscigenação brasileira. Esse fato, ao menos no Brasil, é também responsável direto pelos discursos construídos em torno do corpo da mulher negra para o imaginário social brasileiro – fenômeno o qual chamamos de sexualização.
Se esse fator fosse uma exceção cultural, certamente não representaria um problema social, com desdobramentos reais na vida das mulheres. O discurso da sexualização é a base simbólica para diversas formas de violência sofridas pelas mulheres negras. É o nosso corpo colocado a partir do ponto de vista dos homens brancos, reproduzido por homens negros e toda a sociedade. O lugar do “sexo” é comprovadamente problemático por todos os estudos antropológicos e feministas, para todas as mulheres e sobretudo para as mulheres negras.
Enquanto mulheres, temos a sexualidade negada. Já como mulheres negras, temos a afetividade negada também. A mídia contribui para essa solidão; o sistema que mercantiliza nossos corpos e nossos vidas nós coloca fora do eixo afetivo, ao passo que nos impõe o mercado sexual, a erotização exacerbada e o trabalho doméstico semi-escravizado.
Enquanto mulheres brancas têm sua sexualidade castrada e imaculada, o corpo negro, construído como “maculado, quente e pecaminoso”, é bode expiatório de toda a libido violenta, machista e racista, universalizada através da mídia e de suas megaproduções.
A violência escravocrata incidiu de forma bem singular sobre a vida das mulheres negras no Brasil. O moralismo colonial que vigiava mulheres brancas, sub a mascara da proteção, e as impediam de viver sua sexualidade não incidia a sobre a vida das mulheres negra, já que na condição de escravas essa parcela da população foi coisificada. Enquanto uma mercadoria, esse ser humano sem alma, poderia ter seu corpo e sua força de trabalho explorada.
A mulher negra, para além da submissão do patriarcado, sofre a degradação por razões de raça e da inferioridade social imposta pela escravidão e pelo racismo contemporâneo.
O tema da sexualidade, que já evoca uma cadeia de ações repressoras por parte de estruturas do estado moderno, ainda muito ancorado na Moral Cristã, ganha uma dimensão mais profunda quando se trata do corpo negro, e sobretudo, das mulheres negras. Neste sentido, os avanços acerca da relação da sociedade com a sexualidade de modo geral, chegou de forma muito incipiente, e quase insignificante para as mulheres negras.
A violência escravocrata dos estupros caseiros, se reproduzem ainda em relações atuais. Nossa geração de mulheres negras (jovens) conviveu com um tempo onde era muito comum o estupro de empregadas domésticas, que viviam nas “casas de família” (modernas Casas-Grandes) pelos patrões, além da iniciação da vida sexual dos filhos com essas mulheres. É óbvio que os últimos avanços no empoderamento das empregadas domésticas, sobretudo a PEC das domésticas, vem revertendo este cenário, pois cada vez menos, as trabalhadoras domésticas dormem nas casas onde trabalham.
Toda essa carga histórica que é material na vida de cada mulher negra deste país, foi e ainda é bastante reforçada pela mídia, cotidianamente. A mídia naturaliza a exploração e reforça o estereótipo da hipersexualização. Isto nos ajuda a entender porque, no imaginário nacional, o estrupo, que é uma pratica condenável, abre brecha para julgamentos que culpabilizam a vítima e justificam o ato do estuprador.
Os argumentos que estruturam essa lógica são os mais diversos: a roupa usada, o consumo de bebidas alcoólicas, estar em um lugar inapropriado, entre outros. Nesta lógica conservadora de analisar os fatos, homens são incontroláveis, por isso as mulheres tem o dever de não provocar sua excitação e que no caso das mulheres negras tem um agravante, já que elas são consideradas “naturalmente” disponíveis sexualmente.
É justamente a ação racista e machista da mídia, costurada por outros eixos da cultura nacional, como a música e a literatura, que possibilita que essas opiniões tenham força social, por mais absurdas que pareçam, sendo abordadas desta forma da qual falamos aqui.
Esta movimentação do sentido e do discurso dominante, é feita de forma sutil e muitas vezes cínica. Observamos que nos últimos períodos, há uma tentativa midiática de cooptação desse segmento em ascensão. Mesmo sendo uma ascensão ainda muito lenta, a população negra passou a ser uma parte relevante público consumidor de “produtos culturais”. A armadilha mora na confusão que se coloca entre uma possível promoção ou visibilização do corpo da mulher negra e sua caricaturização erotizada e permanentemente violentada. “Sexo e as Negas” é uma dessas armadilhas.
A rede Globo vem criando estas armadilhas como nenhuma outra emissora. Começou com uma espécie de cotas para negros em papéis menos marginalizados, mas ainda sem nenhum protagonismo. Até em novelas sobre escravidão, os papéis de destaque sempre foram atribuídos aos brancos que, ironicamente, lutavam pela libertação dos escravos.
Em “Da cor do pecado”, a única nos últimos tempos com um real protagonismo negro, através do papel de Taís Araújo, várias leituras racistas eram veiculadas de forma subjetiva e objetiva. Sobretudo a partir do título e de todo o discurso construído ao longo da obra por meio fala das protagonistas “vilãs”, interpretadas por Giovana Antonelli e Lima Duarte. Em contraposição, muito pouco era dito pela boca das outras personagens mais “justas”, do ponto de vista de um discurso educativo, honesto, de enfrentamento ao racismo. Ou seja, o discurso racista era colocado à luz do holofote e a reação da negra era apenas de uma resistência individual, de luta pessoalizada e emotiva.
Mais recentemente, a Globo lança o programa “Esquenta”. Mais uma vez esbarramos no título. O que se pretende que a gente esquente? O mercado financeiro? A universidade? O desenvolvimento do país? A produção cultural? Não. E não nos interessa se uma vez ou outra foi feito um debate sério sobre o racismo neste programa: sua estética, seu cenário, sua construção discursiva e linha de conteúdos demonstra o quanto a globo tem interesse em nos manter em um lugar folclorizado, reduzido, caricaturado.
Não que não gostemos de música popular, arte erótica e arte de rua. Somos capazes e produzir o que quisermos, o que não nos falta é bagagem cultural e criatividade. Acontece que não queremos estar nestes espaços isolados, sem poder cruzar a fronteira. A sociedade burguesa e racista brasileira, não conseguindo invisibilizar completamente determinadas características do povo negro, passou a fazer pequenas concessões para nos permitir alguns lugares de destaque. A música e a arte popular de modo geral, passaram a ser espécie de guetos para negras e negras “bem-sucedidas”.
Como se reservando estes lugares, pudessémos nos contentar e nos acomodar. Nada contra, muito pelo contrário. Acreditamos nossa capacidade de superar o racismo e protagonizar o processo de reescritura da população brasileira e sua história. Mas isto não acontecerá apenas através das produções culturais e muito menos neste tipo de produção midiática.
Nós, mulheres negras, queremos e vamos estar nos cargos dirigentes, nas salas de aula, nos movimentos sociais, na arte, nas iniciativas contra-comunicacionais. Sabem por quê? Porque queremos estar à frente da construção de uma hegemonia política feminista, anti-racista e socialista neste país.
Nossa denúncia e apelo não é à rede Globo ou a esta mídia conservadora, mas ao Governo Federal que já recebeu denúncia através da SEPIR (Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial) e, sobretudo, à sociedade civil (organizada e não-organizada), para a importância de um novo marco regulatório das comunicações.
Em uma mídia democratizada, racistas não passarão.
* Moara Correa (MG) e Bruna Rocha (BA) são militantes da Marcha Mundial das Mulheres e do Coletivo Enegrecer.
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