Por Luiz Fernando Alves Rosa, no site Brasil Debate:
No início de 2015 ressurgiu a polêmica discussão da legalidade ou não de se permitir a participação do capital estrangeiro na saúde nacional. Esta discussão ganhou novo fôlego com conversão da Medida Provisória nº 656/2014 na Lei nº 13.097/2015.
O fato é que a citada MP, que tão somente tinha o objetivo de propor alterações fiscais, foi transformada pelo Congresso Nacional numa grande “colcha de retalhos”, num grande guarda-chuva que acolheu temas que vão de emendas parlamentares ao Orçamento até o perdão de dívidas de clubes de futebol. Dentre tantos temas aleatórios, no capítulo XVII da lei, foi colocada a “permissão para a entrada do capital estrangeiro no setor de saúde”. O trecho pertinente é o seguinte:
CAPÍTULO XVII
DA ABERTURA AO CAPITAL ESTRANGEIRO NA OFERTA DE SERVIÇOS À SAÚDE
Art. 142. A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 23. É permitida a participação direta ou indireta, inclusive controle, de empresas ou de capital estrangeiro na assistência à saúde nos seguintes casos:
I – doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos;
II – pessoas jurídicas destinadas a instalar, operacionalizar ou explorar:
a) hospital geral, inclusive filantrópico, hospital especializado, policlínica, clínica geral e clínica especializada; e b) ações e pesquisas de planejamento familiar;
III – serviços de saúde mantidos, sem finalidade lucrativa, por empresas, para atendimento de seus empregados e dependentes, sem qualquer ônus para a seguridade social; e
IV – demais casos previstos em legislação específica.”(NR)
Do ponto de vista do Direito Positivo, a Lei nº 13.097/2015 é, sem dúvida, inconstitucional, pois ofende diretamente ao Art. 199, § 3º da CF/1988 – “É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei (…)”.
A grande questão, contudo, está em decidir se o “espírito” com o qual a Constituição foi redigida ainda vale. Na época, a intencionalidade do legislador constituinte era garantir a “saúde pública” de qualidade como dever do Estado.
Na prática, todavia, este intento foi sendo posto de lado ao longo da última década, com a redução dos Investimentos da União em saúde, como participação do PIB, e com o incentivo ao crescimento dos Planos de Saúde, o que, aliás, virou negócio de mercado financeiro, com a constituição de grandes fundos.
As perguntas chave, portanto, são: i) A premissa de um sistema de saúde público, de qualidade e custeada pelo Estado continua valendo?, ii) Faz sentido um modelo com maior participação da iniciativa privada?”
Se partirmos do pressuposto original, de um sistema de saúde preponderantemente pública, então a limitação à participação do capital estrangeiro é indispensável como medida de “segurança sanitária” e de defesa da soberania nacional. Se, por outro lado, verificarmos que este modelo “precipuamente público” já não existe mais e constatarmos a grande difusão do setor privado de saúde, talvez esta restrição não seja mais justificável.
À primeira vista, a liberação da participação do capital estrangeiro não parece ser um problema, desde que se implemente a devida regulação estatal. Em tese, a entrada de novos “players” pode até contribuir para tornar o setor de saúde privada mais competitivo, afinal, como em qualquer mercado, o aumento da concorrência sempre é benéfico para o consumidor – neste caso o paciente.
Outro benefício é o fato de que o investimento estrangeiro pode ajudar a amenizar a crise de financiamento e de gestão da rede filantrópica, notadamente das Santas Casas. Pela nova lei, os grupos estrangeiros poderiam, inclusive, assumir a gestão de hospitais filantrópicos.
Evidentemente, os riscos existem e por isso mesmo uma adequada regulação é necessária. Sem o devido controle há o perigo de que grandes grupos internacionais absorvam parte substancial dos prestadores de serviços de saúde locais criando uma espécie de monopólio da saúde privada.
Já pelo lado trabalhista é sempre um desafio lidar com grupos estrangeiros. A saúde privada estrangeira, sobretudo a estadunidense, é muito desregulada e precária no que tange às relações de trabalho e existe, sim, o risco de que os grupos estrangeiros tentem reproduzir este padrão por aqui.
No fim das contas, o mais grave foi a maneira com a qual a liberação do capital estrangeiro ocorreu. Como tantas outras medidas, a decisão foi tomada sem o devido debate com a sociedade. Se uma proposta normativa está em desacordo com a Constituição Federal, o caminho correto e democrático é a votação de uma “Emenda à Constituição”.
É inaceitável que um tema tão importante seja resolvido com o “enxerto” da proposta numa MP “colcha de retalhos”. Mais do que isso, se uma decisão de política pública impacta a vida de tantos brasileiros – pacientes e trabalhadores – precisa ser amplamente debatida com a sociedade.
Não resta dúvida de que sem a adequada participação dos interessados, pacientes e profissionais, o resultado da liberação ao capital estrangeiro na saúde tende a ser danoso. Por isso, entre a legalidade positivista e a viabilidade econômica, escolhemos e reivindicamos o direito ao caminho do debate democrático!
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