Pense positivo
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Pense positivo


JOÃO PEREIRA COUTINHO, Folha de SP

MINHA MELHOR amiga morreu no início do ano. Câncer, eis o nome do ladrão. Não entro em detalhes.
Mas há detalhes que não esqueço: a última vez que a vi, no hospital, dois dias antes da notícia amarga. Havia dor e sofrimento, é lógico, e também a certeza de que a cortina iria descer.
Disseram-se muitas coisas -coisas nunca ditas, inauditas, malditas, como se o tempo, a escassez de tempo, fosse a musa inspiradora dos arrependidos.
Mas o que mais me custou naquele quadro de despedida foi a culpa. Não apenas a minha culpa pelos dias ou semanas desperdiçados longe dela. Falo da culpa que ela sentia por não ter sido "positiva" até o fim.
A crueldade do pensamento nunca mais me abandonou: "positiva" por quê, ou para quê, ou em quê?
Para ajudar na cura, dizia-me ela e diziam-me familiares dela. O "pensamento positivo" é tão importante como as sessões longas e dolorosas de quimioterapia. "O humor do doente é 50% do caminho", ouvi eu, de vários sábios, vários dias seguidos. Onde estará a camiseta com essa frase?
Abandonei o hospital sem palavras. Não basta a doença ser castigo que baste. Ainda existe essa exigência suplementar em "ser positivo".
Para certas mentes primitivas, "ser positivo" não é apenas importante no processo de cura; também é importante para explicar a própria existência da doença.
Se somos "positivos", a doença se comporta como um animal selvagem na presença de uma fogueira: sente medo e se retrai.
Se não somos "positivos", a doença cheira o nosso pessimismo, se aproxima e nos despedaça.
Como despedaçou a minha amiga. No funeral, entre choros e lamentos, ainda havia quem retomasse a mesma filosofia infame. O câncer "vencera a batalha" porque ela "deixara de lutar". E, claro, "o humor do doente é 50% do caminho". Não esmurrei ninguém porque um forte sentimento de repulsa me obrigou a sair logo dali.
É por isso que leio e aplaudo a entrevista de Jimmie Holland à "Veja". Holland é psiquiatra no memorial Sloan-Kettering, em Nova York, e há mais de 30 anos acompanha doentes com câncer.
O resultado dessa experiência pode ser lido em livro recentemente lançado, "The Human Side of Cancer" (o lado humano do câncer, ainda sem publicação no Brasil). Conclusão de Holland: o "pensamento positivo" não existe. É mito. É uma clamorosa estupidez.
Sim, o apoio psicológico é necessário em momentos de fragilidade oncológica, afirma Holland. O bem-estar psíquico é importante para os doentes e para as suas famílias.
E é importante também não deixar que a depressão se instale: quando há tratamentos para fazer, não é boa ideia ficar na cama todo dia, chorando a respetiva sorte.
Mas "ser positivo" é outra história: é acreditar que a nossa vontade otimista, nosso humor solar, nossa forma de "encarar a vida" e outros clichês mentecaptos serão capazes de reverter uma doença impessoal.
Essa crença é típica do racionalismo moderno na sua recusa extrema de aceitar o imponderável. Vivemos mais. Vivemos melhor. Controlamos o nosso destino -pessoal, coletivo- como nenhum dos nossos antepassados.
Mas, apesar de tudo isso, ou exatamente por causa disso, não podemos aceitar que a doença seja apenas doença; que o sofrimento seja apenas sofrimento -sem culpas nem culpados; sem explicação ou resolução. Isso seria um insulto a nossa vaidade racionalista.
Se a doença chega, é porque nós deixamos os maus espíritos entrar. Se a doença se instala e mata, é porque nós deixamos os maus espíritos vencer. "O humor é 50% do caminho", dizem os sábios. E a quem pertencem os restantes 50%?
Obviamente: pertencem à ciência; e a ciência, a única religião dos homens modernos, não falha nunca. Quem falha somos nós. Pense positivo, leitor.
Moral da história? Não sei quantos doentes o "pensamento positivo", na sua lógica ditatorial e desumana, condenou a uma culpabilização final e imoral. Suspeito que existe um exército infinito deles.
Espero apenas que, esteja onde estiver, a minha amiga possa olhar cá para baixo, para a estupidez dos homens, e perdoar aqueles que não sabem o que fazem.




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