Fui visitar o cardeal nigeriano Francis Arinze em seu apartamento, com vista para a Praça de São Pedro, no Vaticano. Arinze é uma das figuras mais importantes da Igreja Católica atualmente e conhece o Vaticano como ninguém. Ele foi, inclusive, ainda que por pouco tempo, considerado um provável sucessor do papa Bento 16. Além disso, Arinze era um dos poucos cardeais a quem o alemão contou pessoalmente a notícia de iria renunciar.Em sua declaração oficial de renúncia, o papa Benedito creditou sua saída à fragilidade de sua idade avançada e às exigências físicas e mentais do cargo, mas sempre houve a suspeita de que algo não havia sido contado. A minha apuração confirmou isso.
Levantei o assunto dos escândalos que precederam o anúncio bombástico do papa e, em particular, o vazamento dos documentos papais, conhecido como Vatileaks, pelo ex-mordomo de Bento 16, Paolo Gabriele. Isso poderia ter contribuído para a renúncia do então pontífice? A resposta de Arinze foi inesperada.
"É legítimo especular e dizer "talvez", porque alguns de seus documentos foram furtados secretamente. Claro que poderia ser uma das razões (para a renúncia de Bento 16)", afirmou Arinze.
"Talvez ele tenha ficado tão triste ao tomar conhecimento de que seu próprio mordomo, em quem tinha confiança, vazou tantas cartas que um jornalista poderia escrever um livro. Não esperava que ele estivesse contente com isso".
No Vaticano, membros jovens e ambiciosos da Igreja são aconselhados a "ouvir muito, ver tudo e não dizer nada". O fato de que uma figura tão importante dentro da Igreja não siga à risca tal cartilha é minimamente surpreendente.
Na essência, o papa Bento 16 era um acadêmico, um téologo e um intelectual. "Para ele, o inferno seria participar de uma semana de treinamento sobre como melhor gerir a Igreja", ironiza uma fonte.
O azar do agora pontífice emérito foi ascender ao trono de Pedro em um momento em que havia um vácuo de poder, no qual um número considerável de integrantes de meio escalão da Cúria, a máquina administrativa da Igreja, se tornaram "pequenos Bórgia" (em alusão à família espanhola-italiana de mesmo nome que produziu três papas, lembrados por seu governo corrupto e ganância pelo poder).
Essa última declaração veio da figura mais importante da Igreja atualmente, o próprio papa Francisco, conhecido por não medir suas palavras. "A corte é a lepra do papado", disse ele certa vez. O argentino descreveu a Cúria como narcisista e egoísta. Foi a mesma Cúria com a qual Joseph Ratzinger teve de lidar.
Intrigas e interesses
No período que antecedeu à morte do papa João Paulo 2º (1920-2005), o coração da Santa Sé foi dominado por intrigas e brigas internas. Essa foi a justificativa para o ex-mordomo do papa, Paolo Gabriele, tornar público documentos confidenciais.
Mas Gabriele afirmou que sua relação com o papa Bento 16 era como "a de um pai com um filho". Sendo assim, por que ele agiu de forma a constranger o homem de quem era tão próximo?
"Ele disse que havia visto muitas coisas ruins acontecendo dentro do Vaticano. Em um dado momento, ele afirmou que havia chegado a seu limite", disse a mim a advogada de Gabriele, Cristiana Arru, enquanto agarrava as contas de seu rosário, em sua segunda entrevista pública.
"E então ele buscou uma saída para tudo isso. Ele diz que viu mentiras sendo contadas. Meu cliente pensou que o papa não estava sendo informado sobre alguns assuntos importantes que estavam acontecendo."
Gabriele foi considerado culpado de "furto qualificado" e passou três meses sob custódia antes de ser perdoado pelo Papa. Mas isso não foi o fim de tudo. O líder da Igreja convocou um inquérito sobre o caso.
Três cardeais foram incumbidos de produzir um relatório de 300 páginas, a ser mantido a sete chaves. Mas um importante jornal italiano informou que havia conseguido ter acesso a parte de seu conteúdo. O resultado? Vazamentos ainda mais embaraçosos, desta vez com rumores sobre a existência de uma rede de sacerdotes homossexuais que exercia "influência inadequada" dentro do Vaticano.
As dores de cabeça continuaram a incomodar o papa alemão. O estopim ocorreu com o episódio envolvendo o presépio anual montado na Praça de São Pedro durante o Natal.
Durante anos, acordos fechados no Vaticano foram superfaturados. Quando um delator tentou reformar o sistema, funcionários da corte papal conveceram o pontífice a "promovê-lo" a um cargo a 6,5 mil quilômetros de Roma.
Episódios semelhantes ocorreram no Banco do Vaticano, durante anos uma fonte de manchetes constrangedoras para a Igreja Católica. A instituição financeira havia sido criada para ajudar as ordens religiosas e as fundações em transferir dinheiro para partes distantes do mundo. Mas quando uma proporção considerável das transações é feita em dinheiro e está sendo enviada para regiões politicamente instáveis do planeta, não é preciso ser um gênio para prever que algo possa dar errado.
Parece que os funcionários do banco tomaram decisões importantes sem informar o Papa. Quando o conselho da instituição demitiu seu presidente reformador, Ettore Gotti Tedeschi (convenientemente no dia em que a notícia da prisão de Gabriele recebia toda a atenção da imprensa), o pontífice foi um dos últimos a saber do ocorrido. Posteriormente, disse, por meio do seu secretário, que ficou "muito surpreso". Tedeschi era um membro da Opus Dei (organização católica dedicada à evangelização) e pensava que estava próximo do papa, mas, no final, isso não o protegeu.
Mudança
Será que tudo isso foi um fardo muito grande para um Bento 16 envelhecido?
A resposta talvez esteja nas palavras do porta-voz do Vaticano, o padre Federico Lombardi. Disse ele: "A Igreja precisava de alguém com mais energia física e espiritual que seria capaz de superar as adversidades e os desafios de governá-la neste mundo moderno em constante mudança".
Na minha avaliação, a Igreja Católica tem agora uma grande oportunidade para seguir em frente e enfrentar os desafios do século 21. Muitas vezes vista como remota, sua liderança agora precisa debater questões polêmicas como a contracepção e casamento gay. A reforma chegou na esteira do escândalo. Isso é algo que não passou batido pelo cardeal Arinze.
"O que você tem de se lembrar", diz ele , "é de que muitas vezes Deus escreve certo por linhas tortas."
(Via BBC Brasil)