QUEM COMETE A BARBÁRIE
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QUEM COMETE A BARBÁRIE


Não sei se tenho alguma coisa pra contribuir sobre o terrível linchamento de Fabiane Maria de Jesus. Mas isso mexeu comigo. Mexeu com muita gente.
No sábado, dia 3 de maio, Fabiane, que vivia no bairro Morrinhos, em Guarujá, litoral de SP, estava voltando de bicicleta da igreja, quando foi cercada por uma multidão e barbaramente atacada. Pelo jeito, o pessoal que não estava batendo estava filmando a cena, pois há (ou havia) vários vídeos desse linchamento (porque hoje não basta cometer a violência, é preciso também filmá-la e publicá-la nas redes sociais). 
Quando a polícia chegou, pensou que Fabiane estava morta. Ela foi levada ao hospital, ficou dois dias em coma, e morreu ontem. Era dona de casa, casada com um porteiro, tinha duas filhas.
Foi uma das vítimas da barbárie. No Guarujá, havia boatos que uma mulher estaria sequestrando crianças para rituais de magia negra. Ou seja, uma bruxa estava à solta. 
Na sexta, dia 2, uma montagem com um retrato falado da "vagabunda" foi publicada na página do Facebook Guarujá Alerta. Não se sabe quem fez a montagem, mas o retrato falado é de 2012, e a foto da mulher de cabelo loiro é de uma usuária qualquer no FB, como bem explicado aqui
Também não se sabe exatamente a responsabilidade da página Guarujá Alerta. Por mais que tenha permitido que um dos seus seguidores postasse a montagem, a página vinha dizendo que, apesar dos insistentes rumores, não havia qualquer registro na polícia de uma sequestradora de crianças na região. A princípio, quando a tragédia eclodiu, o administrador da página (ou os administradores, não dá pra saber, porque são anônimos) veio com bravatas, alegando perseguição política. Depois, baixou o tom, e agora insiste que não falará nada para não prejudicar as investigações.
Ao ler sobre esse linchamento, muitas memórias me vieram à mente. Lembrei de uma das cenas mais chocantes que vi na TV, em toda minha vida: um capítulo da novela Sinal de Alerta, do grande Dias Gomes. Era uma novela das dez da noite, e eu só tinha onze anos. Se não me engano, o primeiro capítulo já mostrava uma cena de linchamento. Eu nunca tinha visto aquilo. Nem sabia que isso existia. Isso de pessoas fora de si espancarem uma pessoa até a morte, com as próprias mãos. Aquilo foi marcante pra mim. Talvez tenha sido meu primeiro momento de "pare o mundo que eu quero descer". 
Morei quinze anos em Joinville, a dois quarteirões de um posto da polícia, que não fazia nada. Não ajudava a diminuir a criminalidade na vizinhança, não apartava brigas de vizinhos, sequer evitava que o bosque ao lado do posto fosse desmatado. E todo mundo sabia que ter ou não ter o posto policial ali dava na mesma. 
Porém, teve um dia em que fui levar meu cachorrinho pra passear, e percebi que vários moradores estavam apontando pro posto policial e comentando. Parece que os policiais haviam capturado um bandido e ele estava dentro do posto, "recebendo um trato", de acordo com meus vizinhos. Eles falavam com grande admiração da polícia torturar um suspeito. Era exatamente isso que eles queriam da PM. 
A maior parte dos meus vizinhos em Joinville era espectadora assídua de noticiários policiais. Não só os de rede nacional, mas os locais, que devem ser mais sangrentos e justiceiros ainda. Os crimes que viam noticiados pautavam suas conversas. Ouso dizer que uma das grandes frustrações desses meus vizinhos era não ter a chance de fazer "justiça" com as próprias mãos. Eles tinham muitos planos do que gostariam de fazer.
Foi lá em Joinville também que uma vizinha mais distante, meio desconhecida, uma vez pediu emprestada minha linda gata preta, Blanche. Ela precisava da Blanche só um pouco, só pra tirar um tiquinho de sangue pra fazer algum tipo de feitiço. Eu não me lembro o que respondi. Creio que fiquei paralisada, sem reação, estupefata demais com o medievalismo alheio.
Além desses pensamentos atravessados, ao ler sobre o assassinato de Fabiane também pensei que eu vivo dizendo como nós feministas precisamos tomar cuidado com o punitivismo excessivo, de como feministas têm de estar ao lado dos direitos humanos, sempre. Às vezes, nos casos mais famosos e escabrosos de estupro ou feminicídio, aparecem feministas defendendo pena de morte, tortura, até castração, ou simplesmente um desejo de fazer justiça com as próprias mãos, de condenar sem provas, sem julgamento. 
Eu me horrorizo com essas palavras, e penso: se houvesse um estuprador próximo, elas participariam de seu linchamento? Não estou falando de legítima defesa, nem de manifestações, nem de escrachos públicos. Estou falando desse sentimento justiceiro, tão perigoso, tão bárbaro.
Mas não posso negar que a primeira pessoa que me veio à mente ao ler sobre Fabiane foi uma mulher que não tem nada a ver com feminismo: Rachel Sheherazade, âncora do SBT. No início de fevereiro, ao comentar o caso de um adolescente (negro, óbvio; a maior parte dos linchados é negra) que foi preso a um poste no Rio por justiceiros, Rachel disse: 
"É, o marginalzinho amarrado ao poste era tão inocente que, em vez de prestar queixa contra os seus agressores, ele preferiu fugir, antes que ele mesmo acabasse preso. É que a ficha do sujeito está mais suja do que pau de galinheiro. No país que ostenta incríveis 26 assassinatos a cada cem mil habitantes, que arquiva mais de 80% de inquéritos de homicídio e sofre de violência endêmica, a atitude dos vingadores é até compreensível. 
"O Estado é omisso, a polícia, desmoralizada, a justiça é falha, quê que resta ao cidadão de bem , que ainda por cima, foi desarmado? Se defender, é claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite. E, aos defensores dos direitos humanos, que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido".
Rachel (e todo o senso comum; meus vizinhos em Joinville, tenho certeza, e, sei lá, 70% da internet?) defendeu a barbárie. Mais tarde, diante da polêmica, ela afirmou ter dito que a ação dos "vingadores" (não justiceiros, eles mesmos com extensa ficha criminal) era "compreensível", não "aceitável". Mas acho que seu comentário por inteiro não deixa qualquer margem de dúvida sobre sua opinião, que é, infelizmente, a da maioria: que só existe uma coisa pior que bandido -- que são os defensores de direitos humanos. Afinal, direitos humanos para humanos direitos, né?
A multidão que linchou Fabiane era composta por "cidadãos de bem", por "humanos direitos"? Provavelmente sim, seja lá o que quer dizer "cidadão de bem", um termo moralista pra chuchu. Então por que estamos horrorizadxs agora? Por que Rachel não aparece para dizer que a atitude dos linchadores de Fabiane foi "compreensível"? Por que ninguém vem defendê-los? Ah, porque Fabiane era inocente! Porque ela não era uma bruxa. Tá, e se fosse? Isso tornaria a atitude dos linchadores mais aceitável, opa, compreensível?
Em fevereiro, pouco depois da polêmica de Rachel, a Folha de SP entrevistou um sociólogo, que disse: "A sociedade civil está ficando progressivamente descontrolada". Não é que o número de linchamentos estourou, mas houve, segundo ele, uma "ligeira intensificação de ocorrências". Se antes havia em média quatro linchamentos por semana no Brasil, agora há cerca de um por dia. E pra maior parte há vídeos, fotos, defensores desses "cidadãos de bem" (leia esta excelente entrevista de 2008 sobre linchamentos). 
Em meados de abril, houve um caso inusitado em Brasília. Um ladrão passou num ponto de ônibus e roubou vários pertences das pessoas que estavam ali. Pouco adiante, foi rendido pelo segurança de um supermercado, e as pessoas em volta correram para linchar o assaltante. 
Uma das pessoas que tinham sido roubadas no ponto de ônibus, uma jovem chamada Jhamille que estava indo para uma entrevista de emprego, também correu pra lá. Mas não pra linchar o sujeito, e sim para protegê-lo. Ela não permitiu que o homem, já nocauteado no chão e ferido, continuasse a ser agredido. 
Além do mais, ela foi a única das pessoas assaltadas por aquele ladrão que foi à delegacia prestar queixa contra ele. "Fiz o meu dever de cidadã ao protegê-lo e denunciá-lo".
Jhamille é um exemplo. Mas, por causa de seu gesto, ela recebeu inúmeras ameaças e xingamentos, de gente que acha "compreensível" fazer justiça com as próprias mãos.
Se tivessem havido mais Jhamilles e menos Rachéis no linchamento de sábado, talvez Fabiane estivesse viva. 




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CORREIO BRAZILIENSE - 09/05 É assustador. Cidadãos se sentem no direito de fazer justiça com as próprias mãos. Ignoram as instituições do Estado e regridem aos tempos em que imperava a lei do mais forte. Ações da polícia consideradas abusivas...

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