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REAÇAS SE OFENDEM AO SEREM CHAMADOS DE REAÇAS
Por onde começo? No início do mês, Danilo Gentili, no seu programa "Agora é Tarde", da Band, fez piada com a maior doadora de leite materno do Brasil, a técnica de enfermagem Michele Maximino, habitante de uma cidadezinha em Pernambuco.
Gentili começa falando do recorde da pernambucana, que doou mais de 300 litros de leite. Corta para outro humorista, Marcelo Mansfield, que segura um copo de leite e imediatamente faz cara de nojo. Continua Gentili: "Em termos de doação de leite, ela já tá quase alcançando o Kid Bengala" (um ator pornô). Mansfield: "Gente, qual o tamanho das teta?" "Tem a foto dela aqui!", entusiasma-se Gentili. E mostram a foto. Alguém grita "Uau!". Mansfield: "Gente, isso não é uma espanhola, é uma América Latina inteira!"
Gentili ia fazer uma outra piada, mas Roger, ex-Ultraje a Rigor, hoje mais conhecido por ser um reaça de marca maior, o interrompe para dizer a Mansfield que a Espanha fica na Europa. Segue-se uma explicação da piada. "Põe a foto dela de novo", pede Gentili, que diz, "Está ela em cima, Plutão e Saturno logo abaixo". E continua: "Depois de ela ver que não ia ganhar nada doando leite ela decidiu vender, olha". E a edição mostra uma imagem de Leite Moça com a foto dela.
Em um minuto e meio de TV, é possível fazer muito estrago. Pessoas na rua passaram a chamar Michele de "vaca" e "vaca do Gentili". Agora ela consegue retirar apenas 600 ml de leite por dia. Antes, eram dois litros. Um de seus peitos secou. Ela está pensando em parar de doar. Na semana passada, ela ingressou com uma ação na Justiça contra Gentili, Mansfield, e a Band.
Por enquanto, a 2a Vara Cível de Olinda determinou que a Band pague uma multa de R$ 5 mil por dia enquanto o trecho do programa não for removido da internet. O advogado de Michele está pedindo indenização de um milhão de reais (pedir é uma coisa, conseguir é outra, e o Brasil não costuma dar altas indenizações).
Agora o que mais tem é gente chamando Michele de interesseira, e tratando o pobre Gentili como vítima do politicamente correto, que não permite nem que ele ridicularize uma pessoa em rede nacional faça humor (entenda como somos condicionados a ficar do lado dos mais fortes contra os mais fracos). Todo mundo sabe quem é Gentili, mas vamos falar um pouco de Michele.
Ela tem dois filhos, um menino de 3 anos, e uma menina de 1 ano e 4 meses. Michele doa leite desde que a caçula, que ainda é amamentada por ela, tinha 7 meses. Todo dia, Michele esterilizava os potes, fazia a coleta do leite, e, junto com o marido, dirigia 80 km para levar os potes até uma maternidade em Caruaru -- sua doação era responsável por 90% do estoque do banco de leite daquele hospital.
E tudo isso era uma doação. Um ato de amor a desconhecidos, já que esse leite é destinado aos bebês prematuros da UTI. Ao contrário do esperma do Kid Bengala, leite materno salva vidas. Foi quando nasceu a filha prematura de Michele que a técnica viu a importância da doação de leite humano.
Não sei quanto a você, mas no meu livro, Michele é uma heroína. Ela salvava vidas, e salva ainda, e torço para que continue salvando (você pode deixar uma mensagem de apoio pra ela aqui). Mas vivemos num mundo em que uma pessoa dessas não é elogiada, e sim esculhambada por um programinha na TV aberta. Tudo em nome do humor. E em nome disso, a gente sabe, vale tudo. E ai de quem reclamar! Se você é mulher e reclama, invariavelmente será chamada de mal comida sem senso de humor e castradora da liberdade de expressão. Pois é, gente como Gentili, pobre alma, não tem liberdade de expressão! Quem tem vasta liberdade de expressão são as feministas, que contam com inúmeros programas de TV e colunas nos grandes jornais pra se expressarem!
Humoristas como Gentili e seu sócio numa casa de shows, Rafinha Bastos (e tantos outros), têm um humor, como diremos, peculiar. Eles adoram posar de transgressores, de moderninhos, mas seus chistes são os mesmos feitos por meninos na quinta série. Meninos que têm nojinho de meninas e então ficam obcecados por peitos. Meninos que veem peitos como um objeto sexual, e que quando descobrem que peitos têm outra função, como amamentar, comparam mulheres a vacas, chamam seios de tetas. Vou repetir: as piadas que esses comediantes tão originais ganham tão bem pra fazer já eram contadas por seus tataravôs. Lembra do Rafinha rindo
das mulheres que amamentam em público, chamando essas mães de barangas exibicionistas, exigindo que coloquem um pano para cobrir suas "muchibas", né? Essas piadas têm alvos muito bem definidos. São sempre mulheres, homossexuais, negros, transsexuais, gente com necessidades especiais, nordestinos, pobres... Quando um sujeito é reaça, ele vai se manifestar sendo reaça, simples assim. Não vem um carimbo escrito "reaça" na testa. É o que o cara diz, como ele age, como ele reage, que vai determinar sua ideologia. Gente preconceituosa como Gentili e cia. vai fazer humor preconceituoso, humor que perpetua os preconceitos, nunca humor que queira derrubá-los. O humor é um tipo de discurso como qualquer outro. E, como tal, pode ser (e geralmente é) preconceituoso. O irônico é que muitos desses humoristas que se escondem por trás do velho "É só uma piada" querem ser levados a sério. Afinal, se eles vivem repetindo que "é só uma piada", é sinal de que eles não acham que humor é grande coisa. Portanto, Gentili nunca quis reservar todo o seu reacionarismo só para o humor. Ele tem ambições políticas (marque minhas palavras). Ano que vem, pleno ano eleitoral, esta criatura sem liberdade de expressão terá um programa para falar de política na Fox. A cereja no bolo é que o programa não estará sujeito à legislação brasileira de horário eleitoral gratuito.
E vejamos, qual será a linha política de Gentili? Puxa, é difícil imaginar... Será que ele é esquerda, direita, centro, ou adepto do "isso de esquerda e direita não existe mais!" (frase sempre dita por gente de direita)? Mas vamos dizer que ele usa termos como petralha. E que ele se aproximou faz tempo de um dos maiores gurus reaças do Brasil, Olavo de Carvalho (quando Olavão me xingou porque eu disse que os mascus o idolatram -- did I lie? --, Gentili deixou um longo calvário no FB de Olavão me xingando de tudo e dizendo que eu o persigo desde que eu escrevia na Veja, sendo que eu, ahn, nunca sequer assinei essa revista, muito menos fui contratada por ela). Esses últimos dias, Gentili se esbaldou: participou de um hangout com Olavão e Lobão, e de um podcast para o Instituto Mises. Nesse podcast, Gentili dispara opiniões como "Tudo que vem do estado é uma m*rda! De funcionários à estrutura! Por isso sou anti-estado". Bem tarde na noite de segunda, eu estava falando de tudo isso no Twitter quando uma moça perguntou o que era Mises, porque ela nunca tinha ouvido falar. Eu respondi: "É um instituto ultraconservador, nojentão", e passei o link pro podcast do Gentili (coisa que não vou fazer aqui, mas é facílimo encontrar no Google). Um rapaz veio argumentar que o Mises não era conservador, e respondi, sem tempo:
Pronto. Foi o suficiente para uma revoada de reaças poluir o meu Twitter. Todos dizendo que não são reaças.
Eu acho engraçado como reaças odeiam ser chamados de reaças. Eles não se assumem. São poucos os caras de direita que batem no peito e dizem, sim, sou de direita! Pelo menos essa batalha cultural a esquerda ganhou -- ser de esquerda é ser revolucionário, é querer mudar o mundo. E ser de direita é ser um coxinha conservador.
Como pega mal ser conservador hoje em dia, algumas pessoas de direita inventaram um termo melhorzinho: libertarian. Na realidade, era liberal, mas nos EUA há uma confusão entre os termos. Liberal pra eles é diferente que pra nós. Pra eles, é gente que defende causas sociais como legalização do aborto, das drogas, do casamento civil gay etc. Pra nós, liberal está ligado à economia.
Por isso, hoje se fala em libertarianismo e libertários, que é um termo bonito, chique, que tem na palavra liberdade sua raiz. Libertários amam espalhar diagramas como este pra "provar" que não são nem esquerda nem direita, muito pelo contrário.
Não precisa ser um gênio pra saber que, no espectro político, há liberais e conservadores, ou esquerda e direita, tanto na área social quanto na área econômica. De maneira geral, quem é de esquerda é de esquerda em tudo -- quer intervenção na economia, um estado forte, e liberdades individuais, o que inclui a luta pelos direitos de grupos historicamente oprimidos. Já pra quem é de direita, varia. Tem conservador que é conservador tanto na área social quanto econômica, e tem conservador só na área econômica. Esses últimos, na teoria, não na prática, seriam os libertários (pra você saber onde vc se encaixa, aqui tem um teste da Veja. Eu fiz faz tempo, e me situei na extrema esquerda. Aqui tem o Political Compass, bem mais completo, só que em inglês).
Eu chamo conservadores de reaças. Mas é o seguinte: conservadores não querem conservar tudo, só algumas coisas que lhes interessam. Conservadores também querem mudanças. Por exemplo, muitos conservadores gostariam que o aborto fosse proibido em todos os casos, inclusive no de estupro, algo que faz parte do nosso Código Penal desde 1940. Aborto, por sinal, é um dos temas que mais dividem libertários.
Os próprios libertários sabem que são constantemente "confundidos" com conservadores. Muitos conservadores os chamam de "marxistas de livre mercado" (ha ha, visualize Marx se revirando no túmulo), ou "o marxismo da direita". Essas duas citações eu tirei do Mises:
"Embora a expressão libertários denote o alto apreço pela liberdade que esse grupo possui, ser pró-liberdade não necessariamente significa adotar uma atitude especificamente contrária ao status quo — a menos, é claro, que o status quo esteja limitando ou impedindo a liberdade humana".
"Seriam o conservadorismo e o libertarianismo moralmente opostos um ao outro, ou seria possível ser conservador e libertário ao mesmo tempo? A resposta a essa pergunta, assim como a resposta para várias outras perguntas, é: depende. Depende principalmente da posição por onde se começa."
Os libertários (cujo grande nome na política é o republicano Ron Paul), em tese, defendem a liberdade absoluta. Ou seja, são a favor da meritocracia (opõem-se às cotas, por exemplo), da preservação de privilégios, da abolição de impostos, e da privatização de tudo, inclusive da educação e da saúde. Detestam sindicatos, porque esses estariam interferindo na livre iniciativa que, como sabemos, se regulamenta tão bem sozinha. Ou seja, libertário é gente que acredita que o problema com o capitalismo não é o capitalismo, mas o Estado que impede que tenhamos um verdadeiro capitalismo. É quem quer submeter a liberdade individual à liberdade de mercado.
E, repito, isso tudo é em tese. Na prática, é bem diferente. Na terça saiu uma pesquisa no Washington Post mostrando que 22% dos americanos se identificam com os princípios libertários, se bem que só 7% são libertários convictos. No entanto, 43% desses libertários se identificam com o Partido Republicano, que tem ficado cada vez mais à direita com o passar dos anos, e só 5% com o Partido Democrata (que é liberal, mas nunca de esquerda). 94% dos libertários, segundo a pesquisa, são brancos. 68% são homens. 62% tem menos de 50 anos. 39% dos libertários se dizem membros do movimento mais conservador que surgiu na última década, o Tea Party.
(Este artigo em inglês é bastante revelador: "A verdadeira história do libertarianismo na América: uma ideologia falsa para promover uma agenda corporativista". Ele cita o papa do liberalismo econômico Milton Friedman como criador do libertaranismo.)
Eu pude sentir o gostinho desse perfil na segunda e terça, quando tive que bloquear uns cinquenta reaças no meu Twitter. Eram praticamente todos homens e brancos. Nenhum me seguia, mas a maioria sabia quem eu era, e já me odiava.
Não é estranho? Eu não tenho programa de TV nem nada. Tenho apenas um blog sem qualquer tipo de patrocínio, e não vivo dele. Sou professora universitária desde 2010. Tenho 46 anos. Trabalho desde os 18. Só nos últimos quatro eu venho trabalhando pro Estado (não pro governo -- há diferença. Se a oposição ao PT for eleita, eu continuarei trabalhando pro Estado), e isso porque, na minha área -- professora universitária de Literatura em Língua Inglesa --, as universidades públicas dão um banho nas particulares. Sou servidora pública, e com orgulho.
Eu não sou famosa, mas sou amplamente odiada por reaças. Por que será que eles me odeiam? Não é por causa do meu cabelo ou do meu corpitcho.
Lógico que, com o humor de quinta série que eles veneram, eles gostam de falar mal da minha aparência (insultos da Turma da Mônica: boba, feia, chata). Mas seria fútil pra alguém tão politizado como eles (reaças se acham politizados, vai entender) detestar alguém apenas pela aparência. Eles me odeiam porque sou de esquerda. E porque sou feminista.
A maior piada da segunda foi ver um reaça escrever que eles, libertários, estão ao lado das feministas. Realmente, pelos insultos que recebi, nota-se.
Pra quem precisa de mais pistas de como libertários são reaças, posso dizer que no Brasil tenta-se criar um partido político chamado Libertários, que se diz "à direita do DEM". Na página do Wikipedia, figuras públicas ligadas ao libertarismo no Brasil incluem Lobão, Luiz Felipe Pondé, e o revisionista histórico Leandro Narloch. Mas eles -- e Gentili e Olavão, tenho certeza -- se ofendem se forem chamados de reaças.
Contudo, existe um libertário que eu gosto. É o Ron Swanson, do Parks and Recreation. Só que ele é de ficção.
Os outros? Tudo reaça. Reaças que acham hilário atacar mulheres como Michele, a maior doadora de leite do Brasil. Uma heroína.
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