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Santa aliança - DEMÉTRIO MAGNOLI
FOLHA DE SP - 09/08
Se o governo do Hamas em Gaza não existisse, o ultranacionalismo israelense teria que inventá-lo
Contam-se mais de 1.900 mortos na faixa de Gaza. Mais de 70% são civis palestinos, entre os quais 448 crianças. Na raiz da tragédia, encontram-se as características geográficas de um território superpovoado, recoberto por cidades e campos de refugiados. Mesmo assim, a dimensão do desastre humanitário não estava escrita nas estrelas, mas inscrita nas opções adotadas pelo Hamas e pelo governo de Israel.
Analistas militares independentes já sabem o que aconteceu. O Hamas ordenou aos residentes da zona-tampão delimitada por Israel que permanecessem em suas casas e utilizou escolas, hospitais e abrigos como depósitos de foguetes, armas e explosivos. Do lado israelense, as regras flexíveis de engajamento da artilharia, bem como a seleção de alvos e munições, atestam a inexistência de um objetivo de minimizar as baixas civis.
O Hamas orientou-se pela avaliação de que o morticínio feriria a imagem internacional de Israel. O gabinete de Benjamin Netanyahu orientou-se pela avaliação de que o morticínio feriria o respaldo interno ao Hamas. Os dois julgamentos estavam corretos e, desastrosamente, ambos os contendores venceram. Hoje, o clamor dos arautos da "solução final" --a destruição de Israel, numa ponta, e o Grande Israel, na outra-- cobre as vozes que insistem em recordar as esperanças suscitadas pelos Acordos de Oslo, de 1993. A pilha de cadáveres civis é o preço, pago pelos palestinos, do triunfo dos extremistas.
Oslo foi, sobretudo, um produto da resistência civil palestina à ocupação israelense. Nos anos da primeira Intifada (1987-1991), as tropas de Israel enfrentaram um levante popular desarmado. Naquelas circunstâncias políticas, o inimigo não podia ser eliminado pela ação de bombardeios. Sob o impacto da intifada, articulou-se na sociedade israelense um amplo "campo da paz", que se conectou com lideranças palestinas dispostas a ultrapassar o tabu da rejeição ao Estado judeu. No fim, o fracasso do processo de Oslo reativou os extremismos simétricos.
O governo autônomo palestino sobreviveu à ruína de Oslo pois serve aos interesses de Israel, do Fatah e do Hamas. Por meio dele, os dois partidos palestinos controlam máquinas quase estatais de poder, que instrumentalizam para aniquilar dissidências. De seu lado, Israel utiliza essa anomalia para, ilegalmente, escapar às obrigações de potência ocupante sem abrir mão da soberania sobre os territórios ocupados. O estatuto de autonomia, junto com os "muros de segurança", separa ocupantes de ocupados, inviabilizando um novo movimento de resistência civil. É o cenário perfeito para os líderes israelenses e palestinos engajados na política do confronto eterno.
Se o governo do Hamas em Gaza não existisse, o ultranacionalismo israelense teria que inventá-lo. A organização fundamentalista continua a pregar a destruição do Estado judeu, fertilizando o solo para a narrativa política que dissocia a segurança da paz. Aos olhos da população de Israel, a guerra de baixa intensidade --conduzida por meio do lançamento de foguetes e de atentados esporádicos a partir de túneis-- justifica as periódicas expedições punitivas. O círculo de ferro do conflito militar perene coesiona os israelenses em torno de um programa de congelamento do status quo.
A santa aliança entre Netanyahu e o Hamas triunfou novamente. O escritor israelense David Grossman captou o cerne do problema ao registrar que, no Israel de hoje, "quem ainda acredita na possibilidade de paz" é visto, "na melhor das hipóteses, como um ingênuo ou um sonhador iludido --e, na pior, como um traidor que enfraquece o país ao encorajá-lo a ser seduzido por falsas expectativas". Essa "corrente fria", escreve Grossman, projeta "um Estado binacional, ou um Estado de apartheid, ou um Estado de soldados, ou de rabinos, ou de colonos, ou de messias".
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