Por Leonardo Wexell Severo, no blog ComunicaSul:O Tratado de Livre Comércio (TLC) firmado entre os Estados Unidos e a Guatemala completou sete anos de vigência no dia 1º de julho, estampando as chagas da desnutrição, da miséria e da dependência da nação maia. Ao se ver estimulado a exportar produtos primários com baixo ou nenhum valor agregado – como açúcar, artigos de vestuário, café, pedras e metais, banana e bebidas – o país também acumula sucessivos e crescentes déficits em sua balança comercial com o decadente Império.
O rombo nos ingressos vem sendo tapado com a remessa de cerca de US$ 4,5 bilhões – cerca de 10% do PIB - feita pelos mais de um milhão e seiscentos mil guatemaltecos que sobrevivem em empregos precários nas plantações da Califórnia, nos subúrbios de Nova Iorque e de grandes cidades estadunidenses.
Com a economia em crise, o governo Obama tem apertado o torniquete migratório e os guatemaltecos deportados nos seis primeiros meses do ano já beiram os 25 mil, superando em 23% o mesmo período de 2012. A Direção Geral de Migração da Guatemala (DGN) avalia que com o debate da “reforma migratória” pelo Congresso dos EUA, estes números serão alavancados nos próximos meses - particularmente entre os setores com maior grau de vulnerabilidade, como mulheres e crianças - e ultrapassarão os 40 mil deportados do ano passado.
Como pudemos ver nos sete dias que percorremos mais de dois mil quilômetros em encontros com trabalhadores das “maquiladoras”, das fazendas de banana e café das multinacionais norte-americanas - com o seu desprezo pelos mais elementares direitos e a arrogância de seus guardas armados de escopeta - a hostilidade ianque é retribuída pelo governo do presidente Otto Pérez Molina com extrema benevolência. Tudo em nome dos interesses ianques e da oligarquia vende-pátria.
No último ano, a somatória de todos os produtos exportados para os Estados Unidos saltou de US$ 2,781 bilhões para US$ 4,977 bilhões. Somente no primeiro quadrimestre de 2013, alcançou US$ 1,327 bilhão, 41,7% do total exportado pelo país.
Mas todos os festejos do governo servil, reverberando a alegria dos EUA, de suas transnacionais e meios de comunicação, não conseguem ofuscar a realidade: a de que a balança comercial com o país do Norte segue altamente deficitária. Prova disso é que as importações do “parceiro privilegiado” tiveram um crescimento ainda maior em termos absolutos, pulando de US$ 4,114 bilhões para US$ 6,458 bilhões. O aumento de 57% tem significado um incremento da dependência, o que faz com que qualquer mínima sacudidela nos EUA provoque graves crises na economia satélite.
A coordenadora de Acesso de Mercados da Comissão de Vestuário e Têxteis (Vestex) da Guatemala, Karin de León, apontou que o mercado estadunidense representa 80% das exportações do setor, mantendo-se no patamar dos US$ 1,1 bilhão no último período. Para tornar esta “inserção” possível, abundam no país as “maquiladoras”, empresas que concentram grande contingente de mão de obra em galpões onde os operários sequer podem conversar – quem dirá se associar – recebendo em troca do seu ritmo frenético, que multiplica lesões e mutilações, os menores salários do país.
Mesmo diante de números tão devastadores e esclarecedores, o ministro da Economia guatemalteco Sérgio de la Torre tece loas ao TLC por dar “segurança empresarial de longo prazo” ao capital estadunidense. E o Ministério da Defesa determina a compra de mais armas. Para combater o inimigo interno.
Desnutrição crônica e agudaGrande produtora de alimentos, a Guatemala ocupa atualmente o sexto lugar mundial em desnutrição crônica e aguda – o único país das Américas no grupo liderado por cinco países africanos – enfermidade que alcança mais de 60% da população, com as comunidades indígenas sendo as principais afetadas.
A anemia materna faz com que o país registre graves doenças congênitas, como hidrocefalia e anencefalia, em percentuais alarmantes que ultrapassam o dobro da média mundial.
Contribuindo para esse calvário, o aumento dos preços dos alimentos e da energia nos últimos anos têm deteriorado o mercado de trabalho guatemalteco, alerta a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). Com o custo de vida nas alturas, 7,5 milhões de pessoas vivem na pobreza, das quais 2,2 milhões na pobreza extrema, catástrofe que afeta toda a área rural.
Dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) apontam que a alarmante desnutrição que atinge as crianças guatemaltecas gera enorme impacto - atual e futuro – para o progresso do país.
A Unicef destaca que esta é uma forma cruel de condenar uma nação ao subdesenvolvimento permanente, pois seus filhos padecerão ao longo da vida em “condições frágeis e delicadas de saúde”, com o nível intelectual limitado ou atrofiado pela deficiente ingestão de nutrientes nos três primeiros anos de vida.
Fascismo armado por EUA e IsraelConforme dados do próprio Banco de Guatemala (Banguat), foi o setor agrícola – marcado pelos sangrentos enfrentamentos, desocupações e desalojamentos forçados em prol do latifúndio e das transnacionais – o que mais “avanços econômicos” obteve.
Na base da repressão e da militarização – com o apoio dos EUA e de Israel – foram “duplicadas as exportações” para a terra do Tio Sam, uma vez que as relações bilaterais ficaram ainda mais carnais desde a vigência do Tratado de Livre Comércio.
“No sul guatemalteco, as grandes extensões de terra necessárias à produção de açúcar para exportação requerem água abundante, que está sendo garantida com o desvio de rios e crescente contaminação, comprometendo a sobrevivência de muitas comunidades”, denuncia o líder indígena Kim Sanik, secretário do Conselho dos Povos do Ocidente, articulação que congrega o povo maia.
A derrubada indiscriminada dos bosques – 90% dos cortes são feitos sem qualquer controle pelas autoridades – informa a Coordenação Nacional para a Redução dos Desastres (Conred), também tem afetado gravemente o ecossistema, com o comprometimento dos taludes e da absorção da água se refletindo no aumento dos desastres naturais ocorridos com frequência no interior do país.
Kim também alerta para a “criminosa devastação” proporcionada pela lei de mineração, “que presenteia as transnacionais com minas de ouro e prata, além de jazidas petrolíferas”. Em favor de indústrias mineradoras e extrativistas estrangeiras, denuncia, milhares de indígenas vão sendo obrigados a deixar as terras mais férteis, “jogados entre a pobreza e a extrema pobreza”, com o país perdendo por completo qualquer perspectiva de soberania alimentar.
Frente à crescente revolta diante da denúncia que as mineradoras estrangeiras vinham pagando somente 1% de impostos, lembra Otto Rottmann, diretor da televisão comunitária Vea Canal, um dos principais meios de comunicação da oposição, ”o atual presidente Pérez Molina teve de prometer durante a campanha eleitoral elevar a cobrança para 40%, mas não cumpriu”.
“Houve uma transação completamente obscura na transição do mando de governo em que as mineradoras de ouro e prata anunciaram que aumentariam unilateralmente em 4% o pagamento de impostos, mas de forma voluntária e sempre que o preço destes metais preciosos não sofresse oscilações. E assim ficou”, frisou Rottmann.
Enquanto abunda em demagogia, o presidente fantoche Pérez Molina não estampa qualquer resquício de democracia. Comandante militar da época da ditadura do general Ríos Montt, o ex-presidente condenado por genocídio pela Corte Suprema da Guatemala e sentenciado a mais de 80 anos de prisão pelo desaparecimento, tortura e assassinato de milhares de pessoas – o “mano dura” tem criminalizado os protestos, qualificando as manifestações populares de resistência aos seus desmandos como “atos delinquentes e terroristas”.
Assim, enfatizou Rottmann, “o que está em curso é uma política de enfrentamento social aberto e armado com a população, com a decretação de estados de sítio e de exceção para garantir os interesses das empresas estrangeiras em nosso país”.
Perseguição, tortura e assassinatosNesta toada, o governo pró-Washington comemora que em 2012 ingressaram via exportações da indústria agropecuária US$ 1,552 bilhão em divisas, mais do que o dobro dos US$ 658,1 milhões registrados no primeiro ano do TLC. No período, os ganhos dos trabalhadores foram ainda mais arrochados, com o irrisório salário mínimo de dois mil quetzales (cerca de trezentos dólares) servindo apenas como referência, pois as empresas não pagam sequer um terço deste valor.
O método para garantir o arrocho foi multiplicar a violência o assassinato de sindicalistas, e a transformação da Guatemala no país “mais perigoso do mundo” para os que defendem os salários e os direitos, lembra Carlos Mancilla, secretário geral da Confederação da Unidade Sindical da Guatemala (CUSG).
Presente à 102ª Conferência da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Mancilla lembrou que 57 lideranças sindicais foram assassinadas desde a vigência do TLC com os EUA, e que “se multiplicam as perseguições, sequestros, ameaças de mortes, demissões massivas e fechamento de sindicatos para inviabilizar qualquer negociação coletiva”.
Em 2013 já foram mortos os dirigentes sindicais Joel González Pérez, Juan Martínez Matute, Carlos Antonio Hernández, Santa Alvarado, Mayro Rodolfo Juárez Galdámez e Kira Zulueta Enríquez. Secretária geral do Sindicato dos Servidores Municipais de Nueva Concepción, Kira foi baleada na cabeça na biblioteca onde trabalhava.
“À medida que os movimentos se fortalecem, também aumenta a violência contra os que combatem pela justiça”, frisou Mancilla, destacando o papel da solidariedade internacional “para virarmos a página de impunidade e terror”.
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