Por Sylvia Debossan Moretzsohn, no Observatório da Imprensa:
Os mais recentes acontecimentos no chamado Complexo do Alemão, conjunto de favelas na Penha, Zona Norte do Rio, deveriam servir de alerta contra a inutilidade do jornalismo transformado em propaganda.
Quem acompanha a cobertura dessa novidade que o governo estadual do Rio de Janeiro instituiu em fins de 2008 – o mesmo governo que adotava a tática do confronto com traficantes, a ponto de afirmar que a população deveria se “acostumar ao estresse da guerra”, e que passou a privilegiar a “pacificação” das favelas, com as UPPs – deve perceber os comoventes esforços que a imprensa carioca, especialmente os veículos das Organizações Globo, faz para sustentar o discurso oficial de “retomada do território”, cuja incongruência já foi criticada aqui (ver “O jornalismo veste a camisa” e “A novilíngua na cobertura das UPPs”).
De repente a imprensa “descobre” a favela, cheia de gente criativa e “empreendedora”, e procura afirmar as UPPs como a linha divisória para esse suposto “antes” e “depois” na vida desses conglomerados urbanos que nunca deixaram de fazer parte da cidade. Não há espaço para o contraditório: é uma avalanche de reportagens que impõe a virtude da nova ordem, articulada a produtos de entretenimento como a bizarra novela recém-encerrada, que transitava entre o Alemão e a Capadócia.
O Globo, por exemplo, investe tanto numa nova versão da “favela dos meus amores”, com a reportagem sobre o namoro de jovens moradores de “comunidades antes rivais” (14/4), quanto em pautas esdrúxulas como a que gerou manchete em 24/3, sobre a contabilidade de projéteis economizados pela polícia (“Com UPPs, PM deixou de disparar 100.430 tiros”).
A realidade se impõe
No entanto, nem o mais dedicado empenho em disseminar e consolidar o discurso oficial pode ignorar a realidade. Seria excessivo relacionar as matérias que registraram tiroteios e mortes, como ocorreu em abril na Rocinha, às vezes acompanhada da velha ordem de fechar o comércio nas favelas ditas “pacificadas”, como a do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, no mesmo mês. No caso do Alemão, reportagem do Globo de 4/5 informava sobre a proibição dos comerciantes de venderem suas mercadorias a policiais, determinação que teria sido dada por traficantes após “intenso tiroteio” noticiado apenas peloExtra, do mesmo grupo empresarial, na véspera.
O Globo, entretanto, voltaria ao reino da fantasia em 18/5, com matéria em tom de release, de mais de meia página, sobre a corrida “Desafio da Paz”, para “unir, no hoje pacificado Complexo do Alemão, moradores do morro e do asfalto”. E, no dia seguinte, um domingo, concedia generoso espaço na capa a reportagem que incluía a região no roteiro turístico internacional.
Até que, na semana seguinte, ocorre outro tiroteio, a morte de mais um traficante e o comércio local amanhece fechado (O Globo, 24/5). Na manhã da corrida – domingo, 26/5 – novo tiroteio obriga ao retardamento do início da competição. Em sua edição impressa, no mesmo dia, o jornal dedicava página inteira a uma reportagem sobre a sobrevivência do tráfico “nos becos”, articulada a texto sobre a reforma urbana de Pereira Passos, com a inevitável referência ao francês Georges-Eugène Haussmann.
(Uma abordagem mais densa sobre essa inspiração urbanística haveria de levar a considerações sobre os vários sentidos da modernização de Paris, com a destruição de vielas que favoreciam as barricadas dos levantes populares de então; no jornalismo de hoje, mencionam-se apenas os cuidados com a higiene e a saúde da população.)
O leitor não é bobo
Em pesquisa sobre a formação do jornalista que cobre pautas cotidianas sobre violência e segurança pública, realizada em 2008, Mariana Costa recolheu alguns depoimentos muito significativos. Um deles, de um repórter com vasta experiência na área, é especialmente revelador da adesão ao discurso oficial:
“Há de se convir que existe o lado do bem e o lado do mal. Até que se prove o contrário, o poder público está do lado do bem. (...) Quem faz polícia tem que ter uma responsabilidade: temos que estar de um lado, que é o da lei. Se um policial corrupto extorquir um traficante, esse cara tem que pagar. Só não dá para ficar publicando matérias que vão beneficiar bandidos. É melhor não dar. Isso tem que estar na cabeça dos jornalistas”.
Ninguém pensa que é fácil tratar de uma realidade tão conflituosa e contraditória como a que vivemos nas grandes cidades. Tampouco se ignora a relação de poder existente nas redações, e os interesses políticos dos empresários que comandam os jornais, algo contra o qual o comum dos repórteres poderá muito pouco. Mas, com tamanho maniqueísmo, não temos nem sequer o ponto de partida para os questionamentos necessários.
Os jornalistas, aparentemente, acreditam no que publicam – tanto que insistem na palavra “pacificação”, mesmo no meio do fogo cruzado – e continuam a agir como porta-vozes oficiosos das autoridades. Mas o público não é tolo como se imagina e eventualmente se manifesta na seção de cartas ou no espaço para comentários online. “Só otário acredita nessas UPPs”, diz um leitor. “Quanto será que o governo pagou por essa propaganda?”, pergunta outro. E é assim que essa contrafação de jornalismo desmorona.
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