"COMO SER FEMINISTA SEM ME DESTRUIR?"
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"COMO SER FEMINISTA SEM ME DESTRUIR?"


Já tem alguns meses que a Amanda me enviou este email:

"Acompanho seu blog há alguns meses, mas nem me lembro direito como cheguei até lá!
Foi através dele que conheci a pessoa inspiradora que você é, mas também foi através dos seus posts que acabei enxergando uma realidade que eu até então ignorava.
O motivo do meu email é lhe perguntar como você faz para lidar com todas essas informações horrorosas sobre ódio, machismo e preconceito.
Antes do seu blog, me considerava uma pessoas com poucos preconceitos (sei que ainda carrego alguns), mas nunca havia pensado muito sobre os tantos assuntos discutidos por lá. Agora no entanto, presto atenção redobrada no que acontece ao meu redor, no que é dito nas redes sociais, no que é notícia e no que acontece no meu dia a dia.
Assim conheci os mascus, descobri que existem pessoas defendendo estupro e pedofilia. Enxerguei que nós mulheres ainda estamos muito longe de não precisar mais do feminismo. Percebi o quão machista é a sociedade e o quão isso é encarado como normal, como natural.
Enfim, descobri um monte de coisas ruins. E essas coisas ruins me fazem mal. Me deixam para baixo. Fazem eu me sentir impotente diante de tanta desgraça.
Fico nervosa quando um 'amigo' fala e faz coisas que agora considero inaceitáveis. Eu não sei como lidar com isso. Eu não sei como posso fazer para lutar contra isso e não sei como continuar me informando sem me deixar destruir por essas monstruosidades.
Por isso lhe escrevo. Para pedir um conselho sobre como me manter informada e consciente sem morrer junto com cada mulher que for estuprada no mundo. Sobre como relevar a ignorância e até a maldade de uma pessoa querida. E também, sobre como militar a favor da igualdade, mesmo que de uma maneira limitada a minha pequena vida.
Obrigada pelo seu precioso tempo e obrigada pelo seu blog!"

Minha resposta: Agradeço o carinho, Amanda. Imagino que muita gente tem as mesmas dúvidas que você. Senão não existiria aquele ditado, "a ignorância é uma benção" -- que, no inglês ("ignorance is bliss"), ficou como "ignorância é felicidade". E isso se aplica a todas as injustiças do mundo: não seria melhor não saber que uma pessoa te enganou? Que tem um monte de criança passando fome num bairro perto de você? Que alguém querido tem uma doença terminal e vai morrer em poucos meses? Que um namorado é cheio dos preconceitos? Acredito que tem muita gente que prefere não saber, ainda mais se é pra se sentir impotente diante da descoberta.
Mas não é o nosso caso, certo? Somos otimistas e temos essa vontade de mudar o mundo. Ou sou só eu que sou uma poliana deslumbrete? Claro, não somos lunáticas ou arrogantes pra pensar que nossa influência será ilimitada. Mas é aquele negócio do Efeito Ripple de influência, da pedrinha jogada numa lagoa. Não vai causar ondas, mas forma círculos. De alguma forma a pedrinha afeta a lagoa. E nós (qualquer pessoa que queira desafiar o status quo no que se refere à busca por igualdade) somos essa pedra no sapato do senso comum. 
O que a gente conversa ou escreve ou protesta pode até não surtir efeito imediato, mas ela fica lá, uma sementinha na cabeça da pessoa. E aí talvez a pessoa ouça isso de novo mais pra frente, ou talvez algo aconteça na vida dessa pessoa pra ela se lembrar daquilo. Recebo um monte de emails de pessoas que chegaram ao blog, acharam tudo que eu escrevia revoltante, e foram ficando e mudando de ideia. Outro dia um cara (que eu não conhecia nem de ouvir falar) escreveu um post no blog dele dizendo que vivia me gozando, até que a filha dele foi ameaçada, e ele notou que tem que ver esse negócio de feminismo aí. A maioria de nós que diz e faz coisas vistas como "rebeldes" já ouviu algo assim.
Sobre a sua pergunta, eu digo que sou feminista desde que me conheço por gente e sempre fui uma pessoa feliz, pra cima. Mas claro que há intensidades, e sei que fiquei mais feminista desde que comecei este bloguinho, em janeiro de 2008. De lá pra cá, me tornei mais consciente do meu feminismo, leio muito mais teoria, converso com mais gente sobre assuntos relacionados ao feminismo, organizo minhas ideias. 
Sou xingada diariamente, todo dia mesmo, e não sei nem dizer se criei uma casca grossa, porque não lembro de ter me deprimido em algum momento por causa disso. Eu simplesmente sei que não é pessoal, e que uma enorme carga de agressividade é disparada contra qualquer pessoa que luta por transformações, em qualquer época e lugar do mundo. As primeiras sufragistas, que lutavam pelo direito óbvio de mulheres poderem votar, já eram chamadas de ogras machonas peludas bigodudas mal-amadas querendo acabar com a família e a civilização. 150 anos depois e os guardiões dos bons costumes ainda não trocaram o disco!
Trolls me fazem rir, mas e ler notícias e relatos terríveis, isso não me afeta? Afeta sim, mas por um tempo. Não posso centrar minha vida naquilo. Tenho que esquecer, pensar em outras coisas, rir, me divertir. Uma feminista é uma pessoa como outra qualquer. Acho difícil alguém ser ativista em tempo integral. Na minha vida pessoal, até parece que vou pensar "What would Jesus a feminist do?" pra cada garrafa de água que vou encher pro maridão na geladeira (ele enche minhas garrafinhas também). Ou aquele mito ridículo (que muita gente ainda jura que é verdade) que certas posições sexuais são anti-feministas. Ou que eu deveria olhar feio prum garçom que puxa a cadeira pra eu sentar. Ser feminista é parte fundamental da minha identidade, mas não é só isso que me define. Também sou mulher cis (identificada como mulher desde que nasci), sou ateia, sou de esquerda, sou hétero, sou monogâmica, sou chocólatra, sou gorda, sou apaixonada por cães e gatos, sou professora, sou anti-preconceitos, sou pão dura miserável... 
Pra cada notícia horrível eu procuro ver um vídeo fofinho de gatos pra aliviar a mente e melhorar o astral. E chamo a atenção de amigos quando eles se superam nas besteiras, mas nem sempre. Tem que ver cada ocasião. Tenho a sorte de conviver com pessoas pouco ou não preconceituosas, em geral. O importante é dialogar, saber ouvir, apresentar bons argumentos, e crer que as pessoas podem mudar. 
Mas sinto, Amanda, que sua pergunta parte do pressuposto errado. Uma das funções do feminismo, creio eu, é denunciar o que há de errado. Outras feministas discordam e dizem que falar de estupro, de violência doméstica, de propagandas machistas, é se vitimizar. Já eu penso que é fundamental mencionar os problemas, até pra não cair na ladainha de "feminismo não tem mais razão de ser, as mulheres já conquistaram tudo que queriam". Mas ficar só nos problemas, sem propor sugestões, sem crer em mudanças, pode ser bem deprê. E, quando a gente percebe que, pouco a pouco, trabalho de formiguinha mesmo, a gente consegue mudar o mundo, isso dá um empoderamento incrível. Portanto, feminismo é empoderador. A meu ver, uma feminista não deve andar cabisbaixa pensando nos problemas. Deve andar orgulhosa, sentindo-se poderosa, forte, feliz e convicta de que está fazendo a sua parte. Feminismo não destrói ninguém -- só constrói.




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